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Absinto, o retorno da fada verde

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O absinto é popular como aperitivo. Thomas Kern / Swissinfo.ch

O absinto voltou à moda, na Suíça e no mundo. Essa antiga bebida controversa está vivendo uma segunda ‘era dourada’. Fomos ao Val-de-Travers, onde tudo começou, para descobrir os segredos deste mito em renascimento.

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A fada verde morreu. Está caída ao solo, com uma faca no coração. De pé, ao seu lado, um eclesiástico indica a hora de sua morte: meia-noite, 7 de outubro de 1910. O rótulo da garrafa de absinto La Belle Époque resume, em poucos centímetros quadrados, o destino do destilado: inserido no livro de bebidas malditas, condenado pela histeria coletiva e pelo moralismo da época.

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Philippe Martin com Artemisia absinthium (absinto), um ingrediente fundamental do absinto. Thomas Kern / Swissinfo.ch

Estamos em Couvet, no coração do Val-de-Travers, um vale entre as cidades de Neuchâtel e Pontarlier, na França, berço histórico do absinto. É aqui, onde tudo começou, que Philippe Martin nos dá as boas-vindas à sua destilaria, La Valote MartinLink externo.

“Em 1º de março de 2025, exatamente 20 anos após o fim da proibição, inaugurei minha nova destilaria, perpetuando a tradição familiar”, diz Martin. “Antigamente, este prédio era um estábulo e abrigava os cavalos da família Pernod”. Pernod – um nome que, em todo o mundo, é sinônimo de pastis, a famosa bebida francesa à base de anis, que foi derivada justamente do absinto após a sua proibição.

De um vale distante para o mundo

O ano é 1797. Daniel-Henri Dubied, juntamente com seu filho, Marcelin, e seu genro, Henri-Louis Pernod, fundou uma destilaria em Couvet, iniciando uma produção em larga escala de absinto. O sucesso foi tão grande que, apenas oito anos depois, Pernod decidiu se aventurar sozinho e abrir uma fábrica em Pontarlier, do outro lado da fronteira com a França, criando as bases do que viria a ser um império.

“Eles eram homens de negócios antes mesmo de o termo existir”, diz Raphael Gasser, diretor da Casa do Absinto MôtierLink externo. “No final do século 19, a empresa Pernod em Pontarlier tinha quase 300 funcionários e produzia cerca de 10.000 litros de absinto por dia”.

Henri-Louis Pernod vendeu o destilado para o exército francês, apresentando-o como um remédio contra doenças estomacais e malária, mas também como uma bebida capaz de instigar coragem. “Depois de lutar na Argélia ou no Vietnã, os soldados logo se tornam colonos”, explica Gasser. “Nesse momento, o absinto passa a ser bebido em todo o mundo”.

Uma exposição temporária na Casa do Absinto relembra a história de uma garrafa que foi transportada no porão de um navio e acabou no fundo do mar, com o navio, em 1871, perto de Jacarta. Encontrada 120 anos depois, essa garrafa relembra a era de ouro da “fada verde”.

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Uma garrafa com absinto produzido em Couvet, provavelmente na década de 1930, que Philippe Martin comprou em um leilão de um colecionador no sul da França. Thomas Kern / Swissinfo.ch

Causa de todos os males?

O absinto logo se tornou a bebida preferida de pintores, escritores e boêmios. “Às onze horas da manhã, e à noite, a partir das cinco da tarde, a hora verde era celebrada nos cafés e bistrôs parisienses”, conta Gasser. Entre os devotos da “musa de olhos verdes” estavam Vincent van Gogh, Paul Gauguin, Henri de Toulouse-Lautrec, Charles Baudelaire e, mais tarde, Pablo Picasso, Oscar Wilde e Ernest Hemingway. Mas o sucesso crescente do absinto não veio sem consequências, especialmente entre as classes trabalhadoras e populares.

“O absinto se tornou o bode expiatório de um período marcado por profundas mudanças sociais e tensões políticas”, aponta Gasser. “A crise do vinho causada pela filoxera, um inseto parasita que devastou os vinhedos europeus entre 1860 e 1880, também desempenhou um papel fundamental. Devido à escassez de vinho, o absinto surgiu como uma alternativa para os trabalhadores que buscavam alívio para os turnos exaustivos nas fábricas”, explica.

O absinto também é frequentemente chamado de “fada verde” ou, em sua região de origem, de “fada azul”. De acordo com a Associação do Patrimônio Culinário SuíçoLink externo, o nome foi cunhado por Oscar Wilde. O escritor irlandês alegou ter visto fadas depois de beber absinto, que antes da proibição era geralmente de cor verde.

O apelido la bleue [a azul, em francês] provavelmente deriva do fato de que o absinto adquire uma tonalidade azulada quando adicionamos água.

Naquela época, o termo “alcoolismo” ainda não era conhecido, mas falava-se em “absintismo”, um fenômeno que levou a opinião pública a pedir a proibição da bebida verde, acusada de ser a causa de episódios de loucura e violência doméstica.

Na Suíça, depois de um caso criminoso, uma campanha moralizadora da igreja, dos vinicultores e dos cervejeiros levou a uma votação popular em 1908: 63,5% do eleitorado aprovou a proibição da destilação do absinto, que entrou em vigor em 1910. A Bélgica já havia adotado essa medida em 1906, e a França o fez em 1915.

Entre as razões para a proibição do absinto estava a presença de tujona, uma molécula contida na planta Artemisia absinthium, popularmente conhecida como absinto ou losna.

Se ingerida em grandes doses, essa molécula pode ter efeitos devastadores sobre o sistema nervoso. Na época da proibição, no entanto, não se conhecia nem as doses perigosas nem as concentrações reais de tujona no absinto.

Vários estudos realizados nas últimas décadas chegaram à conclusão de que a quantidade de tujona presente no absinto é tão baixa que seria necessário beber vários litros por dia para atingir níveis prejudiciais ao sistema nervoso. Mesmo assim, a legislação suíça limita o teor de tujona a um máximo de 35 mg/l.

Mais do que a presença de tujona, o que tornava o consumo de absinto particularmente prejudicial na época era seu teor alcoólico. De fato, muitas vezes a bebida era destilada com mais de 70% de teor alcoólico.

Receita secreta

“No Val-de-Travers, o absinto continuou a ser produzido ilegalmente. Havia mais de 100 destilarias clandestinas”, conta Philippe Martin. “Meu pai usava uma panela de pressão velha, transformada em alambique, que ele colocava na banheira para resfriar”.

Na época, Philippe tinha seis anos e não podia revelar esse segredo a ninguém: caso contrário, seu pai corria o risco de ser preso. “Quando a proibição foi suspensa em 2005, meu pai quase lamentou”, lembra ele. “Com a legalidade, perdeu-se o espírito de rebeldia e a aura de mistério”.

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Cartão postal de 1905 mostrando a propriedade de Louis Pernod em Couvet. O edifício em primeiro plano à esquerda é hoje a sede da La Valote Martin. Thomas Kern / Swissinfo.ch

Em 2014, Philippe Martin assumiu o negócio da família, que vinha sendo transmitido há gerações, juntamente com a receita secreta, e se tornou um destilador profissional. À água e ao álcool regional – obtido de beterrabas processadas na fábrica de açúcar em Aarberg, no cantão de Berna, vizinho ao Val-de-Travers – Philippe acrescenta dez ervas aromáticas, em quantidades precisas. Entre elas, as plantas fundamentais: losna (absinto), losna-do-campo, erva-doce, anis verde, hissopo e erva-cidreira.

“Ao longo dos anos, aperfeiçoei as receitas originais e desenvolvi outras novas”, explica Martin. “Produzo 8.000 litros de absinto por ano, que vendo principalmente na Suíça, mas também na Itália, Alemanha e França”.

Retorno à moda

Há cerca de quarenta destilarias na Suíça, aproximadamente trinta somente no Val-de-Travers, dez das quais operam profissionalmente. A produção total de absinto em um ano é de cerca de 130.000 e 140.000 litros.

“Ao contrário da crença popular, a França não perdeu sua liderança histórica, mas a República Tcheca conseguiu se estabelecer como um importante ator comercial”, ressalta Raphael Gasser. O diretor da Casa do Absinto acredita que essa bebida, que já foi amaldiçoada, passará por uma segunda era de ouro.

Isso também foi confirmado por um artigo do jornal The Times em janeiro. “Hoje, essa bebida está inspirando uma nova geração de consumidores e está voltando, ganhando cada vez mais popularidade nos bares de Londres”, diz o jornal. “Bares e destilarias estão relatando um crescimento das vendas anuais entre 40% e 50%”.

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“Há cada vez mais jovens querendo beber destilados locais de qualidade”, diz Martin. “O processo de destilação possibilita a obtenção de uma bebida muito pura. Além disso, o absinto é envolto em mistério, espírito de rebeldia e ritualidade”. São elementos que têm o poder de reviver a lenda.

E assim, de Couvet, do Val-de-TraversLink externo, o absinto está lentamente ressurgindo na Suíça e ao redor do mundo. Agora cabe a Philippe Martin, da destilaria La Valote Martin, criar uma nova marca, uma lembrança de como a fada verde se tornou imortal, sobrevivendo àqueles que, há mais de um século, desejavam sua morte.

De acordo com um estudo recente conduzido pelo Jardim Botânico de Neuchâtel, em colaboração com a Escola Superior de Viticultura e Enologia de Changins, a Artemisia absinthium – a planta por trás do absinto – não cresce naturalmente em grande escala na região do Jura [onde fica o Val-de-Travers].

A hipótese é que a planta tenha chegado à Suíça com os romanos, que já conheciam suas propriedades medicinais e a utilizavam para fabricar um vinho aromatizado com anis, erva-doce e absinto, os mesmos ingredientes da moderna “fada verde”.

Hoje, no vale do Jura, alguns agricultores retomaram o cultivo de plantas tradicionais, como o absinto, mas também a erva-cidreira, o hissopo e a hortelã, que eram cultivados no início do século 20.

Durante anos, a produção de absinto no Val-de-Travers esteve no centro de uma disputa entre destiladores sobre a concessão de uma Indicação Geográfica Protegida (IGP). Após uma decisão do Tribunal Administrativo Federal, o pedido foi novamente apresentado ao Escritório Federal de Agricultura, que é responsável pelo registro de designações de IGP e DOP (Denominação de Origem Protegida).

Edição: Samuel Jaberg/fh
(Adaptação: Clarice Dominguez)

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