
Escândalo das assinaturas na Suíça expõe falhas na democracia direta

No outono de 2024, surgiram acusações de que uma empresa teria falsificado sistematicamente assinaturas para referendos. Desde então, as demandas pela coleta de assinaturas online ganharam força. O exemplo da Califórnia mostra que, ao digitalizar a democracia direta, a confiança da sociedade é um fator crucial.
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Noémie Roten dá a impressão de ser uma cidadã com consciência cívica. Ela revelou um grande escândalo nas instituições democráticas da Suíça e, depois, afirmou: “Mesmo na melhor democracia do mundo, incidentes como esse podem acontecer.”
Ela acha que os “alertas” não são algo negativo, pois lembram aos cidadãos de fiscalizarem o Estado. O fato de as instituições se questionarem é um bom sinal.
Como escândalo veio à tona
O que aconteceu? Em 2023, a associação de Roten (Service CitoyenLink externo), fez uma denúncia à polícia após descobrir que uma empresa contratada para coletar assinaturas havia fornecido um número suspeitamente alto de assinaturas falsas para sua iniciativa popular. Inicialmente, o público não recebeu informação alguma sobre isso.
Isso mudou um ano depois, com uma investigação dos jornais do grupo Tamedia. A reportagem mostrou que muitas assinaturas eram suspeitas de serem falsas, e que vinham de todo o espectro político, seja em referendos por mais proteção ambiental ou contra a imigração. A principal suspeita recaiu sobre uma empresa comercial.
Propostas sem o apoio
Um alto funcionário do cantão de Vaud disse à Tamedia que acredita haver um número significativo de assinaturas falsas não detectadas. Um consultor de campanha chegou a afirmar que “algumas” iniciativas só foram votadas devido a assinaturas falsas. Agora, essa suspeita paira sobre o sistema político suíço, muitas vezes visto como impecável.
Já em 2022, a Chancelaria Federal havia denunciado assinaturas suspeitas, mas o público só soube disso através da investigação da Tamedia. No início de 2025, o órgão anunciou uma nova denúncia envolvendo 21 mil assinaturasLink externo suspeitas de serem falsas, coletadas mesmo após o escândalo ter se tornado público.
“Bschiss” (termo suíço para “fraude”) foi eleita a palavra do ano de 2024 na Suíça. Esse também foi o primeiro ano em que um país da UE, a Romênia, anulou o resultado de suas eleições presidenciais por ordem da Corte Constitucional, devido à interferência estrangeiraLink externo na campanha.

No caso suíço, a incerteza não afeta o resultado das votações, mas sim a questão de se os suíços votaram em propostas que não tinham o número necessário de apoiadores. “No final, a votação ainda acontece”, diz Noémie Roten, que não está preocupada com a segurança dos resultados das votações na Suíça.
Democracia modelo
Mas as consequências são grandes. A Suíça é vista internacionalmente como uma democracia estável e exemplar. Roten acredita que é preciso estar ciente de que “estamos em uma guerra informacional” e que notícias como essas são usadas “para questionar a credibilidade da democracia”.
Alguns veículos estrangeiros teriam se divertido ao abalar a imagem perfeita da Suíça. “Ao mesmo tempo, vejo como uma força do nosso sistema o fato de que escândalos como esse vêm à tona”, diz Roten. Ela está otimista de que a Suíça aprenderá com o escândalo, mas também acredita firmemente que o país precisa tirar lições desse caso.
Assinaturas falsas
Em muitos países, candidatos precisam coletar um número mínimo de assinaturas para concorrer a cargos públicos. Assim, há relatos de falsificações em vários lugares, como na Irlanda em 2023Link externo, na campanha eleitoralLink externo da África do Sul em 2024 e no estado americano de MichiganLink externo, onde cinco candidaturas ao governo foram barradas devido a milhares de assinaturas falsas.
Roten percebeu o problema das assinaturas suspeitas graças a um sistema digital semiautomatizado usado pelo comitê da iniciativa de referendo para registrar as assinaturas. “Ele funcionou como um sistema de alerta precoce”, diz ela, pois mostrou exatamente de onde vinham as assinaturas falsas. Ainda assim, o trabalho de investigação foi desafiador para a pequena associação.
Falsificar assinaturas é crime na Suíça. Após o escândalo, foi criada uma plataforma online onde os municípios podem relatar assinaturas inválidas ou suspeitas. Isso permite “uma visão atual e abrangente da situação” e ajuda a identificar padrões regionais, informou a Chancelaria Federal à SWI swissinfo.ch. Novas descobertas são incorporadas às denúncias criminais.
A Chancelaria Federal também destacou que tomou várias medidas, como a criação de uma mesa redonda, a revisão de diretrizes e o diálogo com a comunidade científica. No entanto, para Roten, ainda falta uma plataforma para denúncias e recursos para ajudar os comitês na investigação.
Até US$ 30 por assinatura
Na Suíça, algumas empresas dominam o mercado de coleta de assinaturas pagas. Nos EUA, o mercado é maior, tanto para candidaturas quanto para iniciativas populares em estados com elementos de democracia direta. Lá, o preço pode chegar a 30 dólares por assinatura, segundo a NPRLink externo.
Isso levou a debatesLink externo sobre o impacto dos coletores de assinaturas pagos na democracia.
Na Suíça, os preços são menores, mas, desde a pandemia, chegam a 7,50 francos por assinatura. Ainda assim, para comitês que terceirizam 10 mil a 20 mil das 100 mil assinaturas necessárias, o custo é baixo comparado às despesas da campanha eleitoral.
Por que proibir
“Eu mesma coletei mil assinaturas para nossa causa”, diz Roten. Mas, para pequenas associações sem o apoio de grandes partidos ou organizações, é quase impossível levar uma proposta à votação sem coletores pagos, a menos que os envolvidos tenham tempo livre para isso.
Por isso, Roten não quer proibir a coleta paga. “Proibir isso exclui parte da população que não pode se dedicar ao trabalho voluntário”, diz ela.
Organizações grandes, como sindicatos, podem mobilizar muitas pessoas para coletar assinaturas. Já grupos menores, com propostas menos polêmicas, podem ter mais dificuldade.
No Parlamento suíço, há uma série de propostas e questionamentos sobre como lidar com o problema das assinaturas falsas. Uma ideia é a coleta online de assinaturas.
Há grupos na Suíça que há tempos defendem a coleta digital de assinaturas. O escândalo das assinaturas falsas deu novo impulso a essa demanda.
A Chancelaria Federal está trabalhando em “bases para testes práticos e limitados” de coleta digital, o chamado E-Collecting, devido a novas “questões em aberto” sobre como prevenir abusos.
E-Collecting
Um estudo encomendado pelo governo em 2023 analisou os possíveis impactos do E-Collecting. Ao contrário do que alguns temem, a coleta de assinaturas online não levaria a uma enxurrada de iniciativas, mas provavelmente a mais votações. “O aumento, no entanto, seria pequeno”, diz o estudo.
É plausível que as desvantagens para grupos com menos recursos “diminuam um pouco”, enquanto partes da população mais familiarizadas com a tecnologia seriam beneficiadas.
Se o E-Collecting levar a mais votações, isso poderia “ser visto como uma revitalização do sistema político e um fortalecimento do diálogo democrático”.
Pouca experiência internacional
“Acordamos em uma nova Suíça”, disseLink externo Daniel Graf à revista Beobachter logo após o escândalo. Graf defende a coleta digital de assinaturas já há muito tempo.
Sua voz é uma das muitas que ganharam força desde o outono de 2024. Pode parecer que a Suíça esteja atrasada nessa tendência internacional, mas a realidade é que a hesitação também é grande em outros lugares.
Na União Europeia, é possível assinar iniciativas online, mas o instrumento político é tão fraco que não tem impacto realLink externo. E apenas no estado americano de Utah a coleta digital de assinaturas é permitidaLink externo.
Empresas de coleta
Na Califórnia, onde ocorrem muitas votações populares, uma iniciativa de referendo para o E-Collecting falhou há alguns anos. “É irônico”, diz Emily Schultheis, repórter da Politico especializada em democracia direta na Califórnia. “E faz parte de um ciclo vicioso.”
Lá, é quase impossível coletar as assinaturas necessárias sem empresas pagas. “Essa é a principal diferença para a Suíça”, diz Schultheis.
O número de assinaturas necessárias é 2,5 vezes maior em relação à população, e o prazo é três vezes menor: 18 meses na Suíça contra 180 dias na Califórnia.

Muitos californianos desconfiam das empresas de coleta, embora não haja um escândalo comparável ao suíço. Mas observa-se que essas empresas desaparecem e reaparecem sob novos nomes.
Californianos criticam processo
De acordo com Schultheis, os comitês de iniciativa na Califórnia orçam em torno de 8 a 10 milhões de dólares para pagar os coletores. “Os californianos gostam do processo de iniciativa, mas acham que ele é muito caro, muito opaco e não é fácil de se envolver”, diz Schultheis.

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Pessoalmente, ela acredita que a coleta eletrônica é uma maneira de mudar isso. “O objetivo por trás dos elementos democráticos diretos é dar às pessoas a oportunidade de se envolverem diretamente, fazerem propostas legislativas e se concentrarem em questões que elas acham que estão sendo ignoradas”, diz Schultheis. A coleta de assinaturas digitalmente poderia fortalecer esses aspectos.
Crise de confiança
No entanto, ela não acredita que a Califórnia adotará o E-Collecting. “Os EUA estão em uma crise de confiança em vários níveis”, diz.
Qualquer proposta de digitalização da democracia enfrenta resistência. “As alegações de fraude do novo presidente e seus aliados fizeram os republicanos confiarem menos no sistema; e ainda menos em mudanças propostas por um governo democrata, como o da Califórnia”, diz Schultheis. Os californianos recebem suas cédulas em papel e assinam em papel. Isso não mudará tão cedo.
Mesmo que as assinaturas digitais sejam centralmente verificáveis, muitas pessoas ainda confiam mais no papel. A Chancelaria Federal suíça ainda não sabe como a coleta digital afetaria a confiança do público. Só será possível saber com testes práticos.
Edição: David Eugster
Adaptação: DvSperling

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