O comércio em tempos de pandemia
Com fronteiras fechadas e viagens internacionais restringidas, o comércio nos ajudará a encontrar uma saída da pandemia, argumenta a nova diretora-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Ngozi Okonjo-Iweala.
O multilateralismo nunca foi tão imperioso quanto é agora durante a Covid-19. Toda a humanidade enfrenta um inimigo em comum, um patógeno que não respeita fronteiras e ignora tratados e territórios, tarifas e rotas comerciais. E o sistema multilateral de comércio é essencial para combatê-lo, levando produtos e profissionais da saúde aonde forem necessários, tão logo sejam necessários e da maneira mais eficiente possível. Ainda assim, a atual crise mundial de saúde pública está cercada de crises comerciais.
A Dra. Ngozi Okonjo-Iweala é ex-presidente da Aliança Global para Imunização e Vacinação (GAVI, na sigla em inglês). Anteriormente, serviu como enviada da Organização Mundial de Saúde para o combate à Covid-19 (trabalhando no projeto ACT-Accelerator) e como enviada especial da União Africana para o combate à Covid-19. Okonjo-Iweala foi duas vezes ministra das Finanças e ocupou brevemente o cargo de ministra das Relações Exteriores na Nigéria. Ela é a primeira mulher e a primeira pessoa africana a se tornar diretora-geral da Organização Mundial de Comércio.
No início da pandemia, um ano atrás, o medo da escassez de equipamentos médicos essenciais desencadeou uma onda de protecionismo, que, desde então, tem prejudicado a capacidade mundial de combater o vírus. Houve um crescimento sem precedentes da demanda por produtos básicos, mas essenciais, como máscaras, luvas e batas cirúrgicas; em alguns casos a porcentagem desse aumento chegou à casa dos milhares. De acordo com o Centro de Comércio Internacional, em resposta a esse aumento, cerca de cem países e territórios impuseram restrições às suas exportações para garantir suprimentos para seu próprio uso. Muitos acumularam mais materiais do que realmente precisavam.
Regras não respeitadas
Mesmo que, desde então, vários países tenham retirado restrições à exportação e liberalizado o comércio de ao menos alguns suprimentos e produtos médicos, ainda há restrições impedindo o comércio e o acesso a tais produtos. Muitos membros da Organização Mundial do Comércio desrespeitaram as regras que exigem notificação, transparência e caráter temporário de restrições à exportação, embora tenha havido um maior número de notificações depois de um tempo. Equipamentos hospitalares seguiram o mesmo padrão. Além disso, a interrupção da cadeia de suprimentos foi outro fator limitante. Consequentemente, o comércio estancou ou diminuiu exatamente quando trocas sem barreiras eram não apenas economicamente necessárias, como também um imperativo moral e de saúde pública.
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Restrições de suprimentos, protecionismo e nacionalismo em relação à vacina também caracterizam o mercado para a leva de vacinas que está sendo produzida. Da mesma forma que ocorreu com suprimentos e equipamentos médicos, os países que estão agindo apenas para atender seus próprios interesses correm o risco de não atender os interesses de ninguém, acarretando consequências que ecoarão no conjunto da resposta dada à Covid-19 e no mundo que virá depois. Um estudo acadêmico recente, encomendado pela Câmara do Comércio Internacional, prevê que, se os países ricos estiverem com sua população totalmente vacinada até o meio deste ano, mas os países pobres com acesso limitado às vacinas ficarem paralisados, o custo para a economia mundial ultrapassaria os nove trilhões de dólares, um número maior que a soma do PIB da Alemanha e do Japão. E seriam os países ricos que sofreriam metade desse prejuízo. Os danos seriam significativamente menores se os países em desenvolvimento conseguissem vacinar pelo menos metade da sua população até o fim do ano.
Nós não devemos deixar que esses padrões se repitam mais uma vez, e não há tempo a perder. Deve-se começar reconhecendo que o sistema multilateral de comércio é fundamental para o combate à pandemia da Covid-19, para o preparo para pandemias futuras e para o estímulo à recuperação da economia mundial.
Por quê?
Primeiramente, nenhum país pode contar unicamente com seu próprio estoque de produtos de saúde, então, garantir sua livre circulação é essencial. Posturas protecionistas durante a pandemia, que se transformam em políticas de “empobreça o próximo” (“beggar thy neighbor”), prejudicam não apenas outros países, mas também o país protecionista. As barreiras comerciais distorcem o mercado e criam condições desiguais, com chances de reduzir a produção quando mais suprimentos forem necessários. Assim como outros bens, as vacinas dependem do funcionamento de cadeias de suprimento ativas de equipamentos e insumos que podem ser fabricados em vários países, e podem ser ainda mais dependentes da transferência de tecnologia e know-how. Para garantir equidade e viabilidade do acesso a pobres e ricos, para salvar vidas e proteger todos, deve-se usar ao máximo as flexibilidades nas atuais regras da OMC que regem o comércio de produtos médicos durante uma emergência mundial de saúde pública. Além disso, os países devem eliminar ou suspender as tarifas, simplificar suas estruturas reguladoras e agilizar todos os processos e procedimentos comerciais, a fim de ajudar a facilitar a circulação livre e rápida de produtos e serviços de saúde para as populações beneficiárias finais.
Em segundo lugar, a OMC deve desempenhar um papel mais ativo como facilitadora para garantir que o sistema multilateral de comércio funcione sem problemas e com flexibilidade durante momentos de crise global. Ela deve trabalhar em estreita parceria com outras organizações internacionais relevantes, como a OMS, COVAX e as Instituições financeiras internacionais (IFIs), a fim de oferecer soluções para a pandemia. Com demasiada frequência, essas organizações trabalham isoladamente, tornando a soma de seus esforços menor do que seria o conjunto.
Em terceiro lugar, a OMC precisa se planejar e se preparar para pandemias futuras, em vez de simplesmente reagir a elas. Tendo aprendido com os problemas que surgiram durante a Covid-19, como a escassez de testes, tratamentos e vacinas, a OMC deve estar pronta para ajudar seus membros a resolver esses problemas práticos. Apesar de toda a atenção dada às vacinas, também é necessário voltar-se para novos tratamentos e diagnósticos promissores. As flexibilidades existentes na vigência do Acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), da OMC, devem ser amplamente implementadas para garantir que sejam de fácil utilização e capazes de resolver os desafios de acesso e viabilidade econômica. Para as vacinas, as proteções de propriedade intelectual não são a única restrição. Sem a transferência de conhecimento, a eliminação ou suspensão de tarifas e a racionalização dos procedimentos regulatórios das autoridades relevantes, não conseguiremos a rápida implementação que é necessária. Podemos e devemos encontrar uma “terceira via” que permita o acesso sem desencorajar o investimento contínuo em pesquisa e desenvolvimento. O acordo do Serum Institute, da Índia, com a AstraZeneca e Oxford é exemplo de como, com coordenação e cooperação suficientes, os fabricantes de genéricos nos países em desenvolvimento podem licenciar esses produtos dentro do sistema atual.
Ditado igbo
Por fim, a recuperação econômica mundial dependerá do comércio. E isso exige mudanças, e logo. O sistema multilateral de comércio deve livrar-se de sua capa remanescente de restrições e proibições. Os países devem apoiar uma OMC reformada, restaurada e em pleno funcionamento para garantir condições de igualdade no sistema multilateral de comércio e, assim, reconquistar a confiança entre seus membros.
Em minha língua materna, igbo, temos um ditado: “Aka nni Kwo aka ekpe, aka ekepe akwo akanni wancha adi ocha”. Se a mão direita lava a esquerda, e a mão esquerda lava a direita, então ambas se tornam limpas.
Pode parecer contraintuitivo, com as fronteiras fechadas e as viagens internacionais mais restritas do que nunca, mas o comércio nos ajudará a achar a saída para a situação em que estamos. É apenas trabalhando juntos, uma mão lavando a outra, que podemos traçar o caminho que nos levará a atravessar e sair da crise.
As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente da autora, e não refletem necessariamente as opiniões de SWI swissinfo.ch. Este artigo foi publicado originalmente na página Think Global HealthLink externo.
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