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Qual é a extensão da diferença de gênero? Uma pessoa trans relata

Balão violeta com o simbolo do movimento LGBT
A greve das mulheres já causou um grande impacto na política suíça como um dia nacional de protesto. A edição deste ano é chamada de greve feminista e inclui explicitamente as demandas da comunidade LGBTQIA+. Keystone / Anthony Anex

Durante 37 anos, Franziska Roten viveu como homem, depois fez a transição para mulher trans. O que significa isso em relação à diferença de gênero, discriminação e salário?

swissinfo.ch: A “greve das mulheres” na Suíça este ano incluiu explicitamente pessoas trans como parte da “greve feminista”. Essa inclusão faz sentido ou foi uma indiferença bem-intencionada?

Franziska Roten: Eu acho isso ótimo, especialmente como mulher trans. A causa da discriminação contra as pessoas FLINTA – ou seja, Feminina, Lésbica, Intersexo, Trans e Agênero – é a mesma em todas as áreas: a heteronormatividade masculina. É por isso que acho bom que trabalhemos em conjunto.

swissinfo.ch: Você participou da greve?

F.R.: Sim, eu fiz um discurso em Lucerna. O Comitê de Greve das Mulheres de Lucerna me convidou. Se há alguns anos eu tivesse dito a alguém que faria um discurso, meus amigos não teriam acreditado.

Sobre a pessoa

Franziska Roten (40 anos) teve um esgotamento aos 37 anos, o que a levou a uma internação hospitalar para tratamento de depressão e tendências suicidas. Até então, ela vivia como homem, era casada e tinha filhos. Durante toda a sua vida, ela sentiu que havia algo errado consigo mesma. Na terapia, falou pela primeira vez o que sentia há muito tempo: “Acho que me sentiria mais confortável como mulher”. Em janeiro de 2022, ela alterou sua identificação de gênero e, desde então, se chama Franziska. Está separada de sua esposa, mas mantêm uma relação amigável. Sua nova parceira também é transgênero. Franziska Roten trabalha como programadora de software e está envolvida, entre outras coisas, na Transgender Network SwitzerlandLink externo.

swissinfo.ch: E agora você falou para um grande público. O que há de diferente hoje?

F.R.: Por um lado, tenho autismo e dificuldades com interações sociais, por outro, consigo subir no palco e fazer um discurso. Na greve falo sobre questões feministas e imagens tóxicas de gênero, o que, para mim, é algo técnico e lógico, o que facilita as coisas. Mas também posso trazer para o discurso emoções e minhas próprias experiências. Eu sei sobre o que estou falando. Isso me dá muito autoconfiança.

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swissinfo.ch: O que pensava das feministas antes de sua transição?

F.R.: Achava que elas poderiam estar certas, mas tenho meus próprios problemas. No entanto, sinto-me bem por não ter tido uma atitude hostil em relação às pessoas queer e aos temas feministas antes de iniciar a minha própria jornada.

Discriminação no dia a dia e no local de trabalho

Desde janeiro de 2022, as pessoas trans na Suíça podem alterar sua entrada de gênero e, ao mesmo tempo, seu nome, dirigindo-se ao Registro Civil (cartório). No ano passado, 1.171 pessoasLink externo na Suíça alteraram seu registro de gênero. Não existem estatísticas oficiais sobre o número de pessoas trans que vivem na Suíça. As estimativas variam de 0,5 e 3% da população, segundo dados da Transgender Network SwitzerlandLink externo.

Em maio, a Organização Lésbica Suíça (LOS, na sigla em alemão), a Transgender Network Switzerland (TGNS), a Pink Cross e a LGBTIQ-Helpline publicaram o relatório mais recenteLink externo de crimes de ódio. O relatório registra mais ataques e discriminação do que nunca contra pessoas LGBTIQ, com 134 casos relatados em 2022. Quase um terço dos incidentes envolveu pessoas trans.

Na Suíça, não há dados sobre a diferença salarial entre pessoas cis e trans. Uma pesquisaLink externo realizada nos EUA com mais de mil participantes em todo o mundo revelou que as pessoas cis ganham 32% mais anualmente do que as pessoas trans, mesmo que estas tenham um nível educacional semelhante ou superior. Outro estudo realizado nos EUA mostra que a diferença salarial é maior entre as mulheres trans, que ganham 40% menos do que a média dos trabalhadores cis. Em uma pesquisa na Suíça, 16% das empresas inquiridas afirmaramLink externo que não queriam contratar pessoas trans porque temiam complicações no local de trabalho e com os clientes.

swissinfo.ch: O último relatório sobre crimes de ódio contra a comunidade LGBTQ mostra que as pessoas trans são particularmente afetadas pela discriminação. Isso te surpreende?

F.R.: Não, nem um pouco. Calculo que a situação irá piorar ainda mais. Estamos em ano de eleições, a direita pode explorar muito bem essa temática. É possível pintar uma imagem do inimigo que desperte muitas emoções negativas.

Franziska Roten hält eine Rede
Franziska Roten

swissinfo.ch: Isso tudo não está piorando porque há cada vez mais pessoas trans?

F.R.: Eu resisto em dizer que há mais pessoas trans. Nós simplesmente estamos nos tornando mais visíveis. Estamos em 2023, e as pessoas estão se sentindo mais à vontade para dizer: “Não sou o que a norma social gostaria que eu fosse”.

Isso leva a uma maior visibilidade, o que pode levar à percepção de que há mais pessoas ou até que é uma tendência de moda. Uma maior visibilidade aumenta o campo de ataque e torna as pessoas mais vulneráveis.

swissinfo.ch: Por que as pessoas trans são vítimas de crimes de ódio com mais frequência?

F.R.: Provavelmente porque somos diferentes e, aparentemente, mais difíceis de serem compreendidos – em comparação com as outras pessoas que não se enquadram na norma social. Questionamos algo que foi incutido em todos desde tenra idade: existem homens e mulheres biológicos, nada mais. E agora há pessoas que dizem que isso não é verdade; existe também uma identidade de gênero. Obviamente, muitas pessoas não conseguem lidar com isso.

swissinfo.ch: A alteridade das pessoas trans também é mais fácil de reconhecer…

Sim, somos um alvo visível. Pessoas trans nem sempre têm um “passing” que corresponda à sua identidade de gênero (nota da redação: “passing” vem do inglês “to pass”, que significa ser percebido como o gênero com o qual a pessoa se identifica). Isso não é visível em uma pessoa que seja gay, lésbica, bissexual ou agênero.

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swissinfo.ch: Você já foi vítima de discriminação?

F.R.: Sim. Por exemplo, na estação de trem de Lucerna. Fui atacado por um grupo com comentários estúpidos. Não sei o que teria acontecido se não tivesse fugido. No meu antigo local de trabalho, tive um esgotamento físico e mental antes da minha transição. Quando retornei como Franziska, isso foi acordado com o chefe e a direção da equipe.

Mas nem todo mundo gostou, uma pessoa se recusou a emitir uma conta de TI em meu novo nome. Além disso, tratava-me de maneira incorreta em relação ao meu gênero. Um novo supervisor de equipe expressou seu problema comigo, classificando meu trabalho como insatisfatório. Antes, meu desempenho nunca tinha sido um problema. Agora, felizmente, tenho um novo emprego.

swissinfo.ch: Foi difícil encontrar um novo emprego?

F.R.: Candidatei-me a um emprego da forma habitual. Os certificados antigos mostram que eu vivia com um nome diferente. Acrescentei um documento correspondente quando me candidatei.

Mas, de resto, não mencionei isso nem fui questionada sobre o assunto. Onde me candidatei, ninguém se importou com isso. Regularmente, visito clientes em seus locais de trabalho, e o tema trans nunca foi abordado.

Franziska Roten
Franziska Roten

swissinfo.ch: Este ano você concorreu ao Conselho Cantonal de Lucerna. Como foi essa experiência?

F.R.: Surpreendentemente, recebi muitos votos e não tive problemas com o fato de ser trans. Foi em um distrito rural, e Lucerna é um cantão muito conservador. Eu esperava o pior.

swissinfo.ch: De quê?

F.R.: De e-mails maldosos, ser provocado na rua ou comentários desagradáveis em pódios de discussão. Mas nada disso aconteceu. Fiquei realmente surpreso. Isso me dá forças para continuar a me engajar.

swissinfo.ch: Você acha que existe uma diferença de gênero entre pessoas trans e cis (n.r.: “cis” ou “cisgênero” é o indivíduo que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu) na Suíça? Por exemplo, quanto aos salários.

F.R.: Sim, sem dúvida. E isso deve ser assim porque a taxa de desempregoLink externo entre as pessoas trans é significativamente mais elevada do que entre as pessoas cis.

swissinfo.ch: Números dos EUA mostram que pessoas trans ganham menos do que pessoas cis e que mulheres trans ganham ainda menos do que homens trans. Será isso uma discriminação contra as mulheres, as pessoas trans ou especificamente contra as mulheres trans?

F.R.: É difícil de dizer. Eu diria que a identidade trans tem o maior impacto nessa discriminação. Mas no meu caso isso não teve qualquer influência, porque temos faixas salariais claras.

swissinfo.ch: E quanto a encontrar um apartamento, você alguma vez sofreu discriminação desde a transição de gênero?

F.R.: Procurei e encontrei meu apartamento atual com meu nome anterior. Tenho então pouca experiência nessa área. Mas vou poder experimentá-la em breve. Estou planejando, eu e minha parceira, de morarmos juntas. Duas mulheres trans à procura de um apartamento, vamos ver no que vai dar.

swissinfo.ch: Seu estilo de roupa chama atenção. Você tinha uma imagem visual da Franziska antes da transição?

F.R.: (Reflete, busca palavras)

swissinfo.ch: O seu antigo eu também tinha um estilo próprio de roupa?

F.R.: Não. Ele não entendia nada de moda, não tinha qualquer importância para ele. Na época, não havia nada de bonito no meu corpo. Não lhe prestava qualquer atenção especial.

Meu estilo, minha aparência hoje, surgiu pouco a pouco. Estou passando por uma espécie de segunda puberdade, em que estou descobrindo meu verdadeiro eu. Literalmente, também, graças à minha terapia hormonal.

swissinfo.ch: Você se sentia ansiosa pelas coisas que pode fazer agora como mulher?

F.R.: Tenho a sensação de que não preciso mais ter vergonha porque mostro meu lado feminino, ou o que é percebido como feminino. Até agora, tive que reprimir isso.

swissinfo.ch: O que você teve que reprimir?

F.R.: O que digo, como falo. Talvez eu fale de forma mais floreada como mulher, mais cantante. Antes, eu evitava ativamente fazer isso e tentava parecer mais masculino. Minha percepção me dizia: “Você não é suficientemente masculino”. Também fui vítima de bullying na escola por ser diferente. Então acabei adquirindo o hábito de me comportar de acordo com o que era aparentemente esperado.

Estou tão feliz que hoje posso simplesmente fazer o que me convém. Por exemplo, uso a roupa que quero. Também já fui trabalhar com roupas emo/góticas. Antes, nunca teria tido a coragem para tanto.

Tem a ver com me fazer sentir-se bem. Sou uma mulher, meu verdadeiro eu, posso ser eu mesma. Ao mesmo tempo, meu estilo não tem nada a ver com minha identidade de gênero como mulher. Minhas roupas representam minha personalidade e estilo e podem ser femininas, mas não precisam necessariamente ser.

swissinfo.ch: O que mais mudou em você como pessoa?

F.R.: A transição teve um impacto em muitas coisas, incluindo minhas preferências – desde a comida à sexualidade. Hoje gosto de grapefruit, antes não comia. Meu comportamento também é diferente.

No passado, eu costumava ficar muito irritada quando alguém me incomodava. Isso ainda não desapareceu completamente, mas hoje em dia é uma forma diferente de irritação. Estou mais calma. Talvez isso tenha a ver com os hormônios, talvez também com o fato de que estou mais satisfeita comigo mesma.

swissinfo.ch: Não é porque não é apropriado para uma mulher gritar assim?

F.R.: De jeito nenhum. Não dou importância para esses estereótipos clássicos de gênero. Gosto de dizer palavrões, não tanto como antes, mas ainda gosto. Também já me disseram que “as mulheres não xingam tanto”, não me importo. Existe um modelo ou norma DIN para a forma como as mulheres devem se comportar?

Os hormônios são o melhor antidepressivo que já tomei e ouço isso de tantas pessoas trans. É lógico que eles levam a uma mudança de comportamento. E se o comportamento atual é supostamente feminino, que assim seja.

swissinfo.ch: Mas quando se trata da escolha de parceiros nada mudou?

F.R.: Muitas pessoas me perguntam se agora gosto de homens. Quando digo a elas que ainda prefiro mulheres, às vezes ficam confusas.

swissinfo.ch: É possível mudar 100% de um gênero para o outro?

F.R.: Acredito que não se pode dizer isso de forma tão geral. Quando me comparo com o que era antes, sou muito mais feminina. Mas isso não é novo, eu simplesmente reprimia esse aspecto de minha natureza. Visto de fora, pode parecer que eu mudei 100%, mas por dentro nunca foi diferente.

Tive que me mascarar, sempre me controlar e fingir. Não mudei de gênero, apenas vivo agora o que sempre fui.

Greve feminista

Em 2019, após a primeira edição em 1991, ocorreu novamente uma grande greve de mulheres em toda a Suíça. Este ano, a nova edição segue como “greve feminista”. A razão para o novo nome é que ninguém deve ser excluído. Além das mulheres, devem também participar lésbicas, intersexuais, não-binárias, trans e agênero. Homens também podem participar da greve, mas são solicitados a não se colocarem em primeiro plano.

O Coletivo de Greve de Basileia continua a empregar os dois termos, “greve de mulheres” e “greve feminista”, uma vez que ambos têm pontos fortes e fracos, tal como se afirma em resposta a um pedido de informação. A greve das mulheres coloca no centro o sujeito, as pessoas que se definem como femininas. “Para cada pessoa que se define como feminina, está claro que ela é o alvo e que se trata de melhorar suas vidas”.

Mas não inclui todos os gêneros que sofrem com a violência e a opressão patriarcais. “O termo ‘feminista’ pode abranger isso melhor, mas se identificar como feminista está muito mais ligado a uma decisão. Afinal, o que é o feminismo?” Isto não é tão claro para todas as pessoas como é para o comitê de greve. Foi por isso que se decidiu empregar ambos os termos.

Adaptação: Karleno Bocarro

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