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“Sistema perfeito não existe”

No cantão de Appenzell, certas decisões ainda são tomadas em praça pública, um dos primórdios da democracia direta na Suíça. Keystone

O país mais avançado em democracia direta é a Suíça, onde o povo vota questões importantes quatro vezes por ano, em média. Mas ela também tem defeitos e precisa ser atualizada. Na América do Sul, o país mais avançado em termos de democracia direta é o Uruguai, seguido pelo Equador. No Brasil existe “negligência” dos processos de democracia direta. Essas e outras constatações são do cientista político suíço Rolf Rauschenbach, pós doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), na entrevista a seguir.

swissinfo.ch: No texto em que você faz comparações na América do Sul, você se refere ao Brasil, afirmando que há “negligência” dos processos de democracia direta. A reforma política em discussão no Congresso corrobora essa ideia de negligência?

Rolf Rauschenbach: Nem é uma ousadia dizer isso. Por exemplo, depois das manifestações de 2013, a presidente Dilma propôs alguns plebiscitos, propostas bastante complicadas, para dizer o mínimo, considerando a Constituição brasileira. Foram propostas que vieram do nada e que também não levaram a nada. Então podemos perguntar-nos se essas propostas foram algo realmente sério ou simplesmente uma estratégia para acalmar o furor. Recentemente o presidente da Câmara, o Deputado Eduardo Cunha, falou em consulta popular sobre a redução da idade de maioria penal. Me parece outro exemplo de apelo populista aos mecanismos da democracia direta que demonstra um desrespeito às instituições constitucionais e aos cidadãos brasileiros que têm o direito e a vontade de se expressar sobre essas questões.

swissinfo.ch: Quando das declarações da presidente Dilma em 2013, o jurista Fabio Konder Comparato escreveu um artigo sugerindo que se tirasse da gaveta para votação no Congresso dois projetos de lei na Câmara e no Senado, com instrumentos da democracia direta!

 RR: Concordo plenamente. Pelo menos do ponto de vista conceitual teria sido bem mais sensato de primeiro fortalecer as instituições da democracia direta em vez de passar imediatamente a consultas sobre políticas públicas específicas. O que ficou claro nas manifestações de 2013 foi que a população estava muito insatisfeita, mas que faltavam canais formais para transformar a insatisfação em propostas e tomadas de decisões formais e legitimadas pelos cidadãos. O fortalecimento dos processos de democracia, em particular a iniciativa popular, como proposto pelo Fábio Konder Comparato teriam melhorado este quadro fundamentalmente. Porém, as elites políticas optaram por apagar o furor com promessas vazias e algumas medidas simbólicas.

A situação já estava bem complicada em 2013; agora, ela está mais complicada ainda: desemprego e inflação em alta, as contas públicas e externas piorando rapidamente, um governo fragilizado por um parlamento mais independente, por conflitos internos do PT e um noticiário dominado pelos desdobramentos do Petrolão. Não sei qual seria a melhor saída, mas torço por desdobramentos sem rupturas violentas.

No fundo estamos diante de um cenário de ovo e galinha. No meu ver, a situação atual é devida, em boa parte, a falhas institucionais. Como saná-las? Com processos de democracia mais potentes, o sistema teria sido alertado mais cedo e poderia ter reagido mais facilmente. Agora, as saídas não são tão fáceis,

Rolf Rauschenbach: Doutor em Ciências Políticas pela Universidade de St-Gallen, Suíça Pós-doutorado pela Universidade de São Paulo Foi pesquisador no Núcleo de Pesquisas de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP) É consultor independente em estratégia empresarial swissinfo.ch

swissinfo.ch: Houve momentos mais favoráveis para uma reforma política que inclusive poderiam ter incluído elementos da democracia direta?

RR: É uma das críticas ao então presidente Lula. Ele promoveu progressos sociais, não se pode negar isto. Se são sustentáveis ou não veremos. Mas é fato que ele deveria ter feito uma reforma política ampla, fortalecendo os processos de democracia direta entre outras questões. Não sei por que não o fez. Na atual situação, na qual cada um tenta se salvar, seria difícil criar maiorias para reformas substancias. Os desdobramentos recentes da chamada “reforma política” confirmam essa hipótese. Aparentemente é preciso uma crise ainda maior para aumentar a consciência de que a configuração institucional não está adequada para governar um país tão complexo como o Brasil. O problema é só que uma crise maior ainda poderia também desestabilizar o país como um todo.

swissinfo.ch: No estudo comparativo da América do Sul, em termos de democracia direta, a Constituição de quase todos os países faz referência a iniciativa, referendo, plebiscito etc. Onde o subcontinente está mais avançado?

RR: Essa análise mostra de fato que todas as constituições fazem alguma referência à democracia direta. Mas esse conceito é bastante largo e, quando visto mais de perto, é um universo com muitas peculiaridades. Portanto, não tem dois países iguais em termos dessas – ou outras –  instituições. Não é fácil criar um ranking, porque pode ter avanços em uma área, neutralizada por outra. Considerando somente os processos de democracia direta, o Uruguai (Constituição de 1987) é o país mais avançado. Para dar apenas um exemplo, qualquer emenda constitucional requer a aprovação em uma decisão popular. Desde 1990 no Uruguai mecanismos de democracia direta foram acionados em sete datas. A Constituição do Equador é mais recente, ela é de 2008 e garante também uma participação direta bastante ampla.

swissinfo.ch: As constituições na América do Sul foram todas inspiradas na constituição suíça?

RR: É fato que a Suíça tem – nos tempos modernos –  a tradição mais longa com processos de democracia direta no plano federal. Novas constituições sempre se inspiram nos textos já existentes. Para processos de democracia direta, a referência à Suíça é uma das mais óbvias. Na elaboração da constituição brasileira houve esse contato com certeza. Não estudei a história das outras constituições da América Latina, mas faz sentido assumir uma influência direta ou indireta da experiência suíça.

swissinfo.ch: Como a Suíça tem a tradição mais longa de democracia direta?

RR: Já havia experiências de democracia direta em certos cantões como a “Landsgemeinde” (em que as pessoas votavam e ainda votam) com a mão levantada em praça pública). Essas experiências foram adaptadas à Constituição. Já em 1848, o povo podia votar uma revisão total da Constituição via iniciativa popular; também era ele que tinha de aprovar uma nova versão. Em 1876 foi introduzido o referendo facultativo, em 1891 a iniciativa popular.

swissinfo.ch: Tem algum defeito na democracia direta suíça?

RR: Sistema perfeito não existe. Eu diria que os mecanismos de democracia direta em si funcionam bem. Mas eles não acontecem no vácuo. A meu ver, os problemas derivam principalmente do contexto deles e não são exclusivamente inerentes aos processos de democracia direta. Quero ilustrar com três problemas: a abrangência, o direito de voto e o financiamento.

Processos de democracia direta, como todos os processos políticos formais, sempre se referem a um território delimitado. Isso é um fato inevitável e por si não problemático. Porém, acontece que há questões políticas que nem sempre se limitam ao território, cujas fronteiras foram determinadas há séculos. Tem cantões fronteiriços e pequenos como Genebra e Basileia, mas com responsabilidades que vão muito além das fronteiras cantonais. A meu ver, um dos problemas fundamentais que a Suíça tem atualmente é que a configuração cantonal não corresponde mais adequadamente à realidade. É por isso que temos, muitas vezes, constelações, nas decisões da democracia direta,  que talvez não sejam as mais adequadas. Isso não é um problema inerente à democracia direta. O contexto é que mudou e ainda não foi possível adequar a questão territorial.

Um segundo problema fundamental é o direto ao voto. A Suíça é famosa pelo fato de que, somente em 1971, foi aprovado o direito de voto de metade da população, as mulheres. Hoje, a população estrangeira na Suíça, já ultrapassou os 20%. Essa parcela importante está excluída do jogo político apesar do fato de pagar impostos etc. Isso significa que as decisões das consultas populares não representam a vontade de todo mundo afetado pelo resultado.

Um terceiro problema e a questão do financiamento da política. Na Suíça, temos uma legislação muita frouxa e pouco transparente. Novamente, isto não é um problema exclusivo aos processos de democracia direta, mas ele os afeta também negativamente.

swissinfo.ch: O senhor refere-se aos países da América do Sul, vendo instrumentos de democracia direta como complementares à democracia representativa. Na Suíça, a democracia direta está no centro do sistema político?

RR: Do ponto de vista filosófico e do ponto de vista da legitimidade, tanto a Constituição brasileira no 1° artigo quanto no 1° artigo da Constituição suíça, dizem que “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido” ou algo similar. Nesse sentido, conceitualmente, a base são os cidadãos, o povo. É a mesma coisa em todas a constituições democráticas. A configuração constitucional define como esse poder é dividido e organizado. Aí temos milhares de variações. É óbvio que a influência direta de um cidadão suíço é maior do que a de um cidadão brasileiro. Contudo, também na Suíça muitas decisões são tomadas no Parlamento, na administração e nos tribunais. Mas, como o povo suíço tem possibilidade de intervir na esfera mais alta que é a constituição, realmente o povo tem um papel central.

swissinfo.ch: Mas há decisões da democracia direta que contrariam inclusive acordos internacionais assinados e ratificados pela Suíça!

RR: Eu gosto de lembrar o fato que a democracia só é democracia quando não tem uma predefinição do resultado. Podemos dizer que não ajuda na boa vizinhança quando há conflitos entre decisões populares e acordos internacionais, mas acordos internacionais também não são leis divinas. São resultados de processos políticos e podem ser mudados, evoluem de qualquer jeito. Então esses conflitos ocorrem e temos de procurar saídas, obviamente de forma civilizada. Não é porque um resultado de uma votação específica não nos agrada, que o mecanismo é ruim!

swissinfo.ch: Como a democracia direta pode conviver com a globalização e a troca quase instantânea de informação?

RR: É verdade, vivemos em tempos cada vez mais velozes. Os processos de democracia podem sanar ou piorar este quadro, dependendo da forma da aplicação deles. Se a legislação permite um debate substancial antes de uma votação, não vejo nenhum perigo, pelo contrario, os processos de democracia podem “frear” o jogo e melhorar a qualidade da decisão. Por outro lado, quando processos de democracia ocorrem às pressas, o perigo da manipulação ou simplesmente da falta de preparação pode levar a resultados problemáticos.

swissinfo.ch: A democracia direta também contribui na politização dos cidadãos?

RR: Sem dúvida nenhuma. Mas a politização dos cidadãos requer uma certa regularidade nas votações. Tudo o que você não pratica com regularidade, você perde a habilidade. Processos de democracia direta são complexos, já que todo mundo pode participar. Para entender o outro, para poder antecipar o comportamento dos outros, é preciso conhece-los, ter experiências concretas. Se essas experiências ocorrem somente a cada 10 ou 20 anos, acabam sendo dominadas pelo acaso.

swissinfo.ch: Se há politização, porque geralmente a participação nas votações e eleições é baixa?

RR: A participação na Suíça é baixa mas varia com a importância das questões a serem votadas. Eu não acho isso problemático. Democracia é a liberdade de votar “sim” ou “não”, mas é também a liberdade de não votar. Existem vários fatores para a não participação. Na Suíça votamos até quatro vezes por ano! Tem pessoas que acham que o resultado será o que elas querem, de qualquer maneira; tem pessoas que simplesmente não se interessam etc.. Eu acho isso legítimo. Se ninguém se interessasse seria um problema, mas não é o caso.

Além desses motivos deve ter também uma influência dos problemas fundamentais mencionados acima que também inibem a participação. Quanto mais justo, quanto mais adequado um processo político, mais as pessoas confiam e querem participar dele.

No contexto da participação popular surge regularmente o ponto da complexidade de questões a serem votadas. É fato que vivemos em um mundo cada vez mais complexo e que essa complexidade se reflete também na política. O cidadão de hoje tem de se adequar a isso, não tem outra saída. Ele não pode querer aproveitar de todos os progressos sociais, tecnológicos etc. sem assumir as responsabilidades.

Se voltarmos ao Brasil, temos um país enorme e com muita diversidade. No meu ver, essa complexidade muitas vezes não se reflete nas decisões políticas. Regularmente observamos uma redução à Brasília, ao PT contra PSDB etc.. O Brasil é muito mais que isso. Justamente, mecanismos de participação direta podem ajudar a ampliar o foco.

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