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O ressurgimento de Daraya, cidade síria destruída pelas forças de Assad

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Como se fosse um fantasma na noite, Bilal Shorba, o artista conhecido como “Banksy Sírio”, avançava sorrateiro pelas ruínas de Daraya para pintar seus murais, rezando para que os atiradores de Bashar al Assad não o vissem.

Após retornar do exílio para um dos berços destroçados da revolução síria – a única cidade que perdeu toda a sua população durante quase 14 anos de guerra civil -, ele ficou assombrado ao ver que algumas de suas obras sobreviveram.

No muro de uma casa destruída, um de seus murais perfurado por balas, “A Sinfonia da Revolução”, mostra a evolução trágica de um idealismo não violento à morte implacável: uma mulher tocando violino, enquanto atiradores pró e anti-Assad apontam seus fuzis Kalashnikov para ela.

Sua própria sobrevivência é “uma vitória”, diz Shorba, de 31 anos. Apesar dos massacres, de Assad ter forçado as pessoas de Daraya a deixar suas casas, “apesar do nosso exílio, estes murais simples permaneceram e o regime foi embora”, conta.

Daraya ocupa um lugar especial na história da revolução síria.

A apenas sete quilômetros da capital, Damasco, e à vista do palácio presidencial de Assad, sua população distribuiu rosas para os soldados enviados para reprimir seus protestos pacíficos, em março de 2011.

Mas pagaram um preço algo por seu desafio. Pelo menos 700 foram mortos em um dos piores massacres da guerra, em agosto de 2012, quando soldados foram de casa em casa executando todos que encontravam.

Um terrível cerco de quatro anos se seguiu, deixando a cidade faminta, bombardeada e destroçada por bombas de barril (artefatos explosivos improvisados, feitos de barris cheios de explosivos e estilhaços), até que as forças de Assad romperam sua resistência em 2016 e esvaziaram a cidade.

Não se permitiu a permanência de um único habitante dos 250 mil que viviam ali antes da guerra, e muitos foram forçados a partir para o exílio.

Shorba chegou em 2013 a Daraya vindo da vizinha Damasco para se juntar aos rebeldes, armado com nada além de “roupas para dois ou três dias, lápis, um bloco de desenho” e uma cópia em árabe de “Os Miseráveis”, obra-prima de Victor Hugo.

Ele ficou três anos, suportando o cerco e os bombardeios, comendo ervas daninhas e plantas silvestres para sobreviver, até que ele e os outros combatentes foram evacuados com os moradores remanescentes para o nordeste da Síria, reduto rebelde, em agosto de 2016.

Por fim, arrumou um jeito de chegar à vizinha Turquia, onde aprimorou sua arte. 

Agora que está de volta, há muito a fazer em Daraya. Mas Shorba quer começar pintando por cima dos restantes murais gigantes glorificando o clã Assad.

– Sem esperar ajuda – 

A partir de 2019, mulheres, crianças e homens que pudessem comprovar que não tinham envolvimento com a oposição foram permitidos a voltar pouco a pouco a Daraya. Masa a maioria dos homens precisou esperar até depois da queda de Assad, em 8 de dezembro de 2024.

Desde então, muitos voltaram – médicos, engenheiros, professores, operários e fazendeiros -, frequentemente com novas habilidades aprendidas no exterior ou dinheiro obtido de expatriados para ajudar na reconstrução. Outros trouxeram de volta a experiência de ter vivido em uma democracia para um país que realmente nunca a conheceu.

Todos na Síria falam do espírito indomável de Daraya, cujo povo é longamente conhecido por seguir adiante.

Mas como manter uma família em uma cidade onde 65% das construções estão destruídas – segundo um estudo da Associação de Engenheiros Sírio-americanos – e outras 14% seriamente danificadas?

Há interrupções nos serviços de energia e água, com apenas um quarto dos poços da cidade funcionando. Em algumas áreas, o esgoto corre a céu aberto.

Apesar de tudo, Hussam Lahham não hesitou um segundo sequer em trazer de volta sua jovem família, a mais nova de suas três filhas tendo nascido este ano, após a libertação.

Um dos últimos a deixar a cidade em 2016, este líder da sociedade civil de 35 anos esteve entre os primeiros a voltar. Ele organizou a distribuição de alimentos durante os primeiros dias do cerco e o terminou como comandante militar.

“Nós somos os únicos capazes de reconstruir nossos lares”, diz Lahham à AFP. “Se tivéssemos que esperar pela comunidade internacional e pelas ONGs, talvez nunca tivéssemos conseguido voltar”.

Os mortos também o trouxeram de volta. Lahham perdeu mais de 30 amigos e familiares, e sente intensamente sua dívida em aberto pelos “sacrifícios que Daraya fez para recuperar sua liberdade”.

Agora voluntário na administração civil da cidade, ele está ávido por mostrar que a vida continua, mesmo nas circunstâncias mais precárias. Uma família se mudou de volta para um apartamento no andar superior de um prédio, mesmo que a maior parte de suas paredes externas tenha desaparecido.

Algumas áreas da cidade estão em plena atividade, com operários fazendo reparos em telhados, em fachadas danificadas por bombas e consertando bombas d’água. Muitas das oficinas de marcenaria da cidade, pelas quais era longamente conhecida, voltaram a funcionar.

Mas bairros inteiros ainda estão desertos, com pouco mais que ruínas e esqueletos de prédios residenciais destruídos.

– Hospitais em ruínas –

Nenhum dos quatro hospitais de Daraya voltou a funcionar.

O Hospital Nacional, o principal da cidade, que atendia um milhão de pessoas, foi bombardeado até virar um monte de escombros em 2016. Tudo o que restou foi sua estrutura de concreto com vista para o distrito de al-Khaleej, completamente destruído. Até mesmo seus canos de cobre e cabos elétricos foram saqueados depois que as forças de Assad tomaram a cidade.

“Não restou nenhum hospital, sala de cirurgia” ou pronto-socorro em Daraya, lamenta Lahham. Muitos profissionais de saúde fugiram para o Egito, a Jordânia, a Turquia ou para a Europa, e a maioria não voltou.

A única cobertura real vem de uma equipe da organização humanitária Médicos sem Fronteiras (MSF), responsável por gerenciar o único centro médico até o fim do ano.

Lahham se diz convencido de que se houvesse mais serviços de saúde, “mais pessoas voltariam”.

Quando o doutor Hussam Jamus voltou a Daraya, ele não reconheceu sua cidade. “Eu esperava que estivesse destruída, mas não a este ponto”, diz este médico de 55 anos, especialista em otorrinolaringologia, que fugiu com a família no começo do cerco, em 2012.

Após deixar para trás uma prática médica florescente, com 30 mil pacientes, ele se viu exilado na Jordânia, incapaz em um primeiro momento de atuar como especialista. Então, se tornou voluntário, fez uma requalificação e trabalhou em um hospital administrado pela organização Crescente Vermelho emiradense.

Ele voltou assim que pôde e pendurou sua placa na entrada crivada de balas de seu consultório.

Em algumas semanas, ele tinha tratado centenas de pacientes, de crianças com amigdalite a “tímpanos perfurados ou rompidos por surras na prisão”.

“Assim como atendi meus concidadãos que estavam refugiados na Jordânia, eu continuo a atendê-los hoje em seu próprio país” enquanto ele se reergue, conta.

Este também é o objetivo dos jornalistas do Enab Baladi, veículo de comunicação surgido no início da guerra em Daraya, que desde então se tornou a principal mídia independente da Síria.

Quatro integrantes de sua equipe original de 20 profissionais foram mortos entre 2012 e 2016, antes que os sobreviventes mudassem suas redações para a Alemanha e a Turquia, onde seus repórteres foram treinados.

O Enab Baladi tem correspondentes pertencentes a todo o mosaico de comunidades da Síria – sunitas, alauitas, cristãos, curdos e drusos – e não evita temas sensíveis, mesmo que compliquem as coisas com as novas autoridades islamitas.

Eles cobriram os assassinatos sectários de alauitas, braço do islã xiita ao qual pertence o clã Assad, em Latakia (noroeste), em março, assim como a violência contra a minoria drusa registrada em julho em Sweida (sul).

De pé em frente às ruínas da casa que serviu de sede ao veículo no início, seu cofundador, Ammar Ziadeh, de 35 anos, diz esperar que “a mídia independente possa manter um espaço para a liberdade” em um país onde jornalistas foram silenciados por décadas. 

– Crianças traumatizadas – 

Mohammed Nakkash diz que quis trazer de volta a Daraya os dois filhos nascidos no exílio na Turquia para que eles pudessem finalmente se sentir em casa, mesmo que sua casa esteja em ruínas.

Ele não percebeu quanto seus meninos, Omar, de seis anos, e Hamza, de oito, tinham sido marcados pelo racismo e pelo isolamento por serem refugiados até voltarem. Foi então que ele percebeu que tinham problemas em “se conectar com meus pais e meus irmãos”, após terem sido ignorados por seus colegas de escola turcos.

Preocupado de que fossem autistas, ele os levou a um médico. Mas agora os meninos estão se adaptando, voltaram para a escola, onde precisam reaprender tudo, após terem sido ensinados no alfabeto romano na Turquia.

Daraya perdeu sete de suas 24 escolas durante a guerra e também enfrenta uma escassez de professores e equipamentos agora que 80% da população que a cidade tinha antes da guerra voltou.

Muitos alunos nasceram no exílio na Jordânia, no Egito ou no Líbano. Aqueles que frequentaram a escola na Turquia “têm dificuldade com o árabe, que eles falam, mas não conseguem escrever”, disse um funcionário de educação.

Após ter enterrado “oito amigos com as próprias mãos” antes de fugir, Nakkash, de 31 anos, trabalha como carpinteiro. Ele se concentra na reconstrução, no sentido amplo do termo.

Assim como muitos que perderam suas casas, ele e sua jovem família vivem com parentes, mudando-se de um lugar para outro quando sua permanência excede as boas-vindas dos anfitriões.

“A cada dia, lidamos com a volta de moradores que encontram suas casas em ruínas e nos pedem abrigo ou ajuda para reconstruir”, diz o líder da Câmara de vereadores, Mohammed Jaanina.

Mas para reconstruir, precisam ter as escrituras, que frequentemente foram perdidas em bombardeios ou durante a fuga.

– Escondendo os mortos –

Nos dias que antecederam a queda de Daraya, em 2016, os rebeldes e ativistas remanescentes – inclusive Bilal Shorba e Hussam Lahham – tentaram salvar a dignidade dos mortos.

Eles tiraram fotos das sepulturas no Cemitério dos Mártires de todos os que tinham sido massacrados ou mortos durante o cerco, e então removeram as lápides para evitar que fossem profanadas por combatentes pró-Assad.

Graças às fotos, eles conseguiram erguer 421 novos túmulos para aqueles cujos nomes eram conhecidos.

No terreno oposto, sob canteiros de arbustos bem cuidados, ficam as valas comuns das vítimas ainda não identificadas do massacre de agosto de 2012, quando as forças do governo e milícias aliadas arrasaram a cidade, matando 700 pessoas em apenas três dias.

“Estou lutando para dar uma sepultura para os meus irmãos”, diz Amneh Khoulani, segurando as lágrimas enquanto reza no cemitério.

Três de seus irmãos foram detidos e nunca mais foram vistos.

Uma foto de um deles surgiu depois no vazamento dos “Caesar Files”, que contêm imagens de alguns dos milhares de desaparecidos nos centros de tortura e detenção do regime de Assad.

“Há muito sofrimento em Daraya. Muitos não sabem onde seus filhos estão”, diz Khoulani, membro da Comissão Nacional de Desaparecidos, que discursou duas vezes no Conselho de Segurança da ONU pedindo justiça.

“Nós lutamos para nos livrar de Assad, mas agora estamos procurando sepulturas”, diz a ativista, que divide seu tempo entre a Grã-Bretanha e a Síria.

Na entrada do cemitério, barbantes com fotos desbotadas dos desaparecidos flutuam no ar, acompanhados de uma faixa que diz, “Eles não são números”. 

Bilal Shorba pintou um mural em um dos muros do cemitério. Nele, uma menininha colhe rosas em memória do pai, mas não tem uma sepultura para depositá-las.

lar-mam/at/fg/jj/mvv/am

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