
IA surge como aposta para otimizar ajuda humanitária
Com os orçamentos de ajuda humanitária sob mais pressão do que nunca, a inteligência artificial pode ajudar a otimizar recursos limitados. No entanto, a adoção da inteligência artificial (IA) traz seus próprios riscos.
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A recente decisão do governo dos EUA de encerrar a USAID criou lacunas significativas no financiamento de programas de ajuda em todo o mundo. Diante desses desafios urgentes, é crucial explorar soluções técnicas inovadoras para mitigar seus efeitos. A inteligência artificial pode ser uma delas.
A IA pode gerenciar orçamentos de ajuda limitados com mais eficiência, prevendo crises humanitárias antes que ocorram, analisando rapidamente necessidades em campo e melhorando a velocidade e a logística da distribuição de ajuda. No entanto, a adoção da IA também apresenta riscos. A forma como empresas de tecnologia, governos e o setor humanitário lidam com esses riscos será crucial para o futuro do uso da IA na assistência humanitária.

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Nosso boletim informativo sobre a política externa
Em 2024, a Usaid forneceu mais de 40%Link externo do total de US$ 4,8 bilhões em financiamento de doadores da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). Seu desligamento repentino deixou campos de refugiados, ajuda humanitária em zonas de conflito e respostas a desastres gravemente subfinanciados.
SegundoLink externo o jornal The New York Times, o encerramento também afetou programas globais de saúde, comprometendo o acesso a tratamento para HIV e serviços para mais de 20 milhões de pessoas, incluindo 500 mil crianças. Como resultado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) relatou interrupções no tratamento em 50 países.
Impulsionados por mudanças nas prioridades econômicas e pelo aumento de gastos com defesa, países como Alemanha, França e Reino Unido cortaramLink externo seus orçamentos de assistência internacional. Da mesma forma, o Parlamento reduziu os gastos com desenvolvimento internacional, colocando em risco programas da Agência Suíça para Desenvolvimento e Cooperação (ASDC).
A Suíça, assim como outros países ricos, reduziram o orçamento voltado à ajuda externa:

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Como funciona a ajuda externa em momentos de agitação global
Diante desses cortes, a IA pode ajudar a melhorar a eficiência e otimizar a alocação de recursos no setor humanitário. Assim como está transformando indústrias ao aumentar a produtividade em escala, ela tem o potencial de agilizarLink externo a distribuição de ajuda e fortalecer o monitoramento de direitos humanos.
Um exemplo notável é o Famine Action Mechanism (FAMLink externo), liderado pelo Banco Mundial em parceria com Microsoft, Google e Amazon Web Services (AWS). Lançado em 2018, o mecanismo usa algoritmos de IA para emitir alertas precoces sobre escassez de alimentos, permitindo intervenções proativas para mitigar crises humanitárias.
A IA também é usada em iniciativas de monitoramento de direitos humanos. Em 2021, o Conselho Dinamarquês para Refugiados (DRC) empregou IA para prever tendênciasLink externo de deslocamento, analisando dados históricos de conflitos, padrões climáticos e implementação de direitos humanos.
Riscos da IA na assistência humanitária
O uso da IA em decisões críticas que impactam vidas humanas não é isento de riscos. Além das preocupações com privacidade e transparência dos modelos, um dos maiores desafios é o viés inerente aos algoritmos.
Embora esses algoritmos sejam continuamente testados e atualizados para reduzir vieses, seu uso em contextos que envolvem grupos marginalizados ou em situação de vulnerabilidade – como mulheres ou minorias étnicas – exige extrema cautela para evitar danos não intencionais.
Por exemplo, a negligência histórica em dados de treinamento pode resultar na má alocação de ajuda humanitária para comunidades indígenas rurais.
Os vieses na IA não vêm apenas dos dados usados para treinar os modelos, mas também das escolhas de design e codificação feitas por seus criadores, que podem incorporar normas, valores e perspectivas específicas aos sistemas.
Como em muitas outras indústrias, a IA é um campo de competição geopolítica. Seu desenvolvimento é dominado por corporações e entidades de países industrializados, o que representa um desafioLink externo significativo para o Sul Global, que frequentemente careceLink externo de infraestrutura, recursos e expertise para criar soluções independentes de IA.
Mais importante ainda, muitos desses países lutam para produzir dados representativos de alta qualidade, essenciais para treinar algoritmos adequadamente.
Geopolítica da IA e o risco de dependência
O domínio de empresas estrangeiras de IA pode impor normas, valores e perspectivas que desconsideram culturas locais e distinções regionais.
Empresas de democracias liberais, especialmente as influenciadas por “valores ocidentais”, frequentemente incorporam quadros referenciais em seus sistemas com valores normalmente conhecidos sob a sigla “WEIRDLink externo” (Western, Educated, Industrialized, Rich, and Democratic), em português, valores ocidentais, de alto nível educacional, ligados à riqueza e à democracia.
Por outro lado, empresas chinesas costumam desenvolver sistemas de IA que refletem prioridades estatais e interpretações específicas de direitos, governança e relações internacionais.

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Inteligência artificial na China avança sob controle estatal e intriga a Suíça
O setor de ajuda humanitária é particularmente vulnerável à adoção de soluções de IA que reforçam desequilíbrios de poder global. O fim da Usaid mostrou claramente o quanto o sistema humanitário atual depende do apoio financeiro dos EUA e outros países doadores. Essa dependência já foi usada para promover prioridades políticas e normas culturais de nações doadoras no Sul Global.
À medida que países ocidentais reduzem sua ajuda humanitária, a China e outros atores globaisLink externo podem aproveitar a oportunidade para expandir sua presença em regiões em desenvolvimento. A IA pode se tornar uma ferramenta útil nos esforços chineses para ampliar sua influência. Além de fornecer ajuda tradicional, o país pode moldar políticas no Sul Global exportando suas soluções de IA.
Soluções locais e colaboração interdisciplinar
Para escapar dessa dinâmica geopolítica, os modelos de IA precisarão ser projetados com sensibilidade cultural, incorporando valores, normas e estruturas morais locais, além de serem desenvolvidos no Sul Global com conhecimento e talento regionais. Soluções de IA que ignoram contextos locais correm o risco de reforçar a dependência histórica do auxílio humanitário tradicional.
Um exemplo bem-sucedido é a Lelapa AILink externo, empresa sul-africana que desenvolveu o primeiro modelo de linguagem multilíngue do continente, o InkubaLM. A Lelapa defende que línguas africanas carregam contextos culturais e regionais, algo que modelos genéricos de IA frequentemente pecam por não levar em consideração.
Empresas de tecnologia já estão reconhecendo essa necessidade. Em fevereiro de 2025, a Microsoft iniciou uma turnê de IALink externo em Lagos, Nigéria, promovendo seu compromisso com o avanço de habilidades digitais.
A iniciativa visa capacitar um milhão de nigerianos em IA até 2026, permitindo que integrem a tecnologia em seus negócios e desenvolvam suas próprias soluções. Investir em capacidades locais e modelos de IA desenvolvidos regionalmente é uma política industrial inteligente, pois sistemas locais se integram mais facilmente aos mercados e refletem melhor normas e valores regionais.
Caminho a seguir
A colaboração entre engenheiros de IA e profissionais de direitos humanos é essencial para garantir soluções sensíveis ao contexto. Iniciativas como a parceriaLink externo da Escola Politécnica Federal de Zurique (ETH) com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), a AI Skills CoalitionLink externo da União Internacional de Telecomunicações (UIT) e a plataformaLink externo de Genebra para ferramentas digitais de monitoramento de direitos humanos promovem abordagens interdisciplinares para aplicar a IA em causas humanitárias.
O AI for Good Global SummitLink externo, em julho de 2025, reúne partes interessadas para garantir que a IA possa combater desigualdades e fornecer soluções para o monitoramentoLink externo dos direitos humanos.
Enquanto o mundo enfrenta cortes na ajuda humanitária, a IA oferece oportunidades para otimizar recursos, mas também exige cuidado para não reproduzir velhas assimetrias de poder. O futuro da assistência humanitária dependerá não apenas de quem escreve o algoritmo, mas de quem define seus valores.
Adaptação: Soraia Vilela
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