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Bolsonaro vira o tirano Macbeth em teatro de Zurique

Scene from Before the Sky Falls
Homens de negócio farreando no palco: a destruição da Amazônia no estrangeiro significa grandes lucros. Diana Pfammatter

A peça "Before the Sky Falls" (Antes da queda do céu), da dramaturga brasileira Christiane Jatahy, envia uma mensagem inequívoca sobre o papel desempenhado pelos países ricos, notadamente a Suíça, na destruição da Amazônia - e um clamoroso apelo à pressão internacional sobre o governo Bolsonaro.

Foi uma coincidência fatídica. A nova peça de Christiane Jatahy estreou no teatro Schauspielhaus em Zurique no mesmo dia em que o senado brasileiro aprovou o relatório da CPI da Covid sobre o comportamento do presidente brasileiro Jair Bolsonaro na pandemia, pedindo a condenação de dezenas de membros da administração. O próprio presidente é acusado de 9 delitos, incluindo crimes contra a humanidade.  

No palco de Zurique, cinco homens brancos de terno e gravata celebram um contrato de 3 bilhões — dólares ou euros — com copiosas quantidades de álcool, insinuando um acordo comercial indefinido que poderia estar relacionado à exploração madeireira, mineração de ouro ou agronegócio.

Scene of the play
Um grande espelho fica no fundo, refletindo os fantasmas que alimentam a paranóia do tirano, enquanto mulheres e crianças se movem dentro de projeções cinematográficas perfeitamente adaptadas à cenografia. O trabalho de Jatahy sempre interagiu com o teatro e o cinema, mas os adereços cinematográficos são uma parte vital da dramaturgia. Em Before the Sky Falls, as projeções saem do palco, invadindo o teatro inteiro. Diana Pfammatter

Shakespeare na selva

O texto é uma adaptação livre de Macbeth de Shakespeare entremeada com trechos do livro “A Queda do Céu” de Davi Kopenawa. O líder indígena Yanomami também esteve presente na estréia, como parte de um extenso programa de sensibilização sobre a situação dos povos indígenas brasileiros junto a instituições européias e nas Nações Unidas em Genebra.

Jatahy também inseriu declarações públicas de Bolsonaro, e frases retiradas de uma reunião ministerialLink externo em 2020 que se tornou viral nas mídias sociais. “Esta não é uma teoria de conspiração, estes são os fatos, mostrados mesmo em um vídeo vazado de uma reunião de gabinete onde o ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles, um notório “inimigo” das florestas e das populações indígenas] pede ao presidente para aproveitar a atenção atraída pelas pandemias para promover a destruição da floresta”, explica ela.

A diretora ressalta que a peça é um manifesto, um grito de socorro à comunidade internacional, para chamar a atenção para a catástrofe geral em curso no Brasil. “Meu trabalho sempre foi político, mas após o impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, em 2016, este ato de denúncia tornou-se uma necessidade”, diz Jatahy. “O aspecto político nos afeta como cidadãos, é claro, mas compromete seriamente nosso futuro, e não somente no Brasil. A destruição da Amazônia é uma questão mundial”, acrescenta ela.

Jatahy and Davi Kopenawa on the stage
Christiane Jatahy recebe os aplausos da plateia junto ao líder Yanomami Davi Kopenawa (ao centro, de máscara), na estreia de “Before the Sky Falls”, no teatro Schauspielhaus de Zurique (27 de outubro de 2021). Eduardo Simantob

Indiferença internacional

Na véspera da COP 26, é surpreendente que praticamente não haja nenhum tipo de pressão internacional significativa sobre o governo Bolsonaro. Sua presidência tem validado níveis recordes de desmatamento, e ele afronta o Código Penal e a Constituição quase diariamente desde que foi eleito (e muitas outras vezes antes disso), impunemente. Os laços de sua família com o crime organizado, milícias, e esquemas de corrupção abundam.

“Bolsonaro, no entanto, é apenas o palhaço. É todo o sistema que precisa ser mudado”, disse Jatahy à SWI swissinfo.ch na véspera da estréia em Zurique. Na verdade, Bolsonaro opera de maneira semelhante a Donald Trump, o ex-presidente dos Estados Unidos: desviando a atenção pública enquanto as cordas são puxadas nos bastidores por diversos grupos de interesse que compõem sua base de apoio.

Tudo isso em um já frágil ambiente democrático. Desde o impeachment de Roussef, entre 6.200 e 13.500 oficiais militares, da ativa e da reserva, ocuparam cargos civis no governo federal e em empresas estatais (os números variam de acordo com as fontes). Quinze dos 17 generaisLink externo que formam o Alto Comando do Exército ocupam cargos-chave na administração.

O “palhaço”, entretanto, está fazendo tudo o que prometeu durante sua campanha presidencial: diluindo os direitos trabalhistas e as aposentadorias, desmantelando todas as instituições culturais e artísticas federais, desconsiderando as minorias, derrubando os controles de armas e desmantelando até mesmo as parcas agências de monitoramento ambiental e de fiscalização, tornando as terras públicas e reservas indígenas presas fáceis para madeireiros, garimpeiros e grileiros.

“É importante nos conscientizar que a pressão internacional é no momento a única esperança de reverter esta dinâmica destrutiva que estamos vivendo agora no Brasil em numerosos aspectos, especialmente na Amazônia – mas não apenas”, diz ela. “Há muitas partes interessadas dentro do país na extração ilegal de madeira e mineração, mas esta cadeia vai muito além das fronteiras”.  

Isso certamente explica porque a reação internacional é tão contida. O ouro extraído ilegalmente, por exemplo, está sendo exportado e ‘limpo’ no mundo rico, notadamente na Suíça”, lembra Jatahy.

Censura sem censores

As artes e a cultura são um alvo principal das políticas de Bolsonaro. Ele baseou sua campanha e apelo populista na intensificação das chamadas “guerras culturais”, apostando na radicalização. “Não é só a floresta que está queimando, mas também nossas instituições culturais e a memória do país. E quero dizer literalmente queimando. Desde sua eleição, duas importantes instituições culturais, o Museu Nacional e a Cinemateca Brasileira, foram destruídas pelo fogo”, diz Jatahy.

Neste contexto, juntamente com as pandemias, a classe artística enfrenta um desafio existencial mal comparável ao vivido durante a mais recente ditadura militar (1964-85). “Não há mais necessidade de censura”, diz ela. “Eles simplesmente desmantelam os mecanismos que sustentam a criação artística e cortam todo o financiamento.”

De volta a Zurique, a ligação entre Macbeth e Bolsonaro pode parecer às vezes um pouco rebuscada, mas uma profecia no quarto ato da peça de Shakespeare, muitas vezes repetida em Before the Sky Falls, soa ominosa:

“Macbeth nunca poderá ser vencido,

até a floresta de Birnan a Dunsinane ter subido,

lançando-se contra ele”.(*)

Em outras palavras: o tirano jamais será vencido até que a floresta marche contra ele. Macbeth, por sua vez, faz pouco caso – “Isso nunca ocorrerá”, diz ele. Bolsonaro também desafiou seu destino, dizendo que só deixará o cargo “morto, preso ou vitorioso”; uma frase bem shakespeariana para alguém que se orgulha de seu iletrismo e que certamente jamais leu nenhum shakespeare.

(*): Tradução de Rafael Raffaelli (Editora UFSC)

Christiane Jatahy portrait
© Estella Valente

Nascida no Rio de Janeiro, Christiane Jatahy é artista associada do Odéon-Théâtre de l’Europe (Paris), Schauspielhaus Zürich, Arts Emerson Boston (EUA) e Piccolo Teatro de Milano (Itália). “Before the Sky Falls” é a segunda parte de sua Trilogia do Horror. A primeira, “Entre chien et loup” (Entre cão e lobo, baseada no “Dogville” de Lars von Triers) aborda os mecanismos do fascismo. A terceira parte, “After the Silence” (Depois do silêncio), está sendo produzida no Rio e explora as questões da escravidão e suas conseqüências para o racismo estrutural..

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