Suíça acorda os fantasmas do Brexit ao discutir acordo com a UE
Uma nação europeia orgulhosamente independente confrontada com uma escolha política difícil: manter o acesso ao mercado único da UE, mas mediante contribuições financeiras, abertura para migrantes e menos independência no poder judiciário.
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O dilema que recaiu sobre o Reino Unido do Brexit, hoje paira no pequeno país alpino.
Depois de mais de uma década de negociações difíceis com Bruxelas, a Suíça chegou a um acordo que visa manter e melhorar seu acesso ao mercado único da UE.
Mas o acordo – que será submetido a um referendo popular – inclui as mesmas questões espinhosas que têm atormentado a relação entre o Reino Unido e a UE, incluindo contribuições orçamentárias, política de migração e o papel dos juízes estrangeiros.
Quase 1.000 páginas de texto, reveladas no mês passado após a assinatura de um acordo em dezembro, finalmente ancorariam a Suíça com mais firmeza no maior mercado único do mundo.
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Mas até mesmo os seis acordos de acesso ao mercado, que tentam colocar ordem no emaranhado de acordos anteriores, ainda estariam em cima de cerca de 120 acordos setoriais adicionais que continuam em vigor.
Se aprovada, a nova estrutura obrigará a Suíça a espelhar algumas das mudanças na legislação da UE em áreas que incluem a regulamentação de mercadorias, migração, eletricidade e transporte – ou enfrentará medidas de retaliação. Berna teria pouca influência sobre a definição das regras, mas teria que contribuir com 375 milhões de euros (349 milhões de francos suíços) anualmente ao orçamento da UE.
Com o novo acordo, a Suíça poderia ser readmitida como membro associado no programa científico Horizon Europe e se tornar parte do órgão de ciência nuclear Euratom, além de integrar novamente o sistema de intercâmbio de estudantes Erasmus.
Em muitos aspectos, o pacto se assemelha ao acordo do Reino Unido que buscava maior independência, mantendo o acesso ao mercado da UE. Em maio, a UE e o Reino Unido concordaram com uma série de mudanças, indo do setor de pesca ao de energia, como parte de uma “redefinição” de suas relações.
“Houve um aumento no engajamento e no interesse dos britânicos nas negociações que estamos tendo com Bruxelas”, disse uma autoridade suíça.
Ao mesmo tempo, as negociações ocorrem também no momento em que Londres e Berna estão buscando laços mais profundos de defesa e segurança com a UE, após as ameaças do presidente Donald Trump de retirar as garantias dos EUA que sustentam a segurança da Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
“A posição pública da UE há muito tempo é de que as negociações com a Suíça e o Reino Unido são separadas, mas, na prática, os negociadores da UE fizeram questão de evitar estabelecer precedentes em uma negociação que pudessem afetar a outra”, disse Anton Spisak, membro associado do Centro de Reforma Europeia.
Mas Spisak acrescenta que vários dos funcionários da UE que estão envolvidos nas negociações com a Suíça, são os mesmos que participam das negociações entre o Reino Unido e a UE. Ambos acordos chegaram a conclusões quase idênticas em questões que envolvem segurança alimentar (SPS) e governança.
No país alpino, primeiro haverá um processo de consulta pública até o outono e, em seguida, o texto – possivelmente com algumas emendas – será entregue ao parlamento para ser debatido no ano seguinte. O governo pretende realizar o referendo até junho de 2027, caso contrário, as eleições nacionais adiariam o início da consulta para 2028.
O “alinhamento dinâmico” – que significa a adoção automática de mudanças nas leis da UE – incorre em seis áreas principais: reconhecimento mútuo de padrões de mercadorias, eletricidade, segurança alimentar, transporte aéreo e terrestre e liberdade de movimento. Berna pode fazer lobby junto a Bruxelas e aos membros da UE quando atualizações dessas regras forem discutidas, mas não tem voz no resultado final e enfrenta sanções se não implementar as mudanças.
Isso será desconfortável para muitos suíços, dado seu sistema profundamente arraigado de democracia direta. “Os suíços sempre seguiram essas atualizações de qualquer maneira. Mas eles querem ter a capacidade de escolher. Essa é a principal diferença para nós”, disse um financista de Zurique.
Os acordos incluem uma cláusula de arbitragem que garante que as disputas sejam resolvidas por um painel independente – em vez de unilateralmente pelos tribunais da UE – para atender às preocupações suíças sobre soberania e autonomia jurídica.
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Mas quando o caso envolver alguma legislação da UE, o painel de arbitragem deve solicitar ao Tribunal de Justiça Europeu, o tribunal superior do bloco, uma interpretação vinculativa.
Carl Baudenbacher, advogado e especialista em direito comercial internacional, argumentou que o TJE seria a verdadeira autoridade legal nos bastidores.
“Os árbitros são legalmente obrigados a solicitar ao TJUE nos casos mais importantes e a sentença é legalmente vinculante. Isso é essencialmente uma camuflagem”, disse ele.
Assim como no Reino Unido, a jurisdição do TJUE e a adoção “dinâmica” das leis da UE estão se tornando um para-raios para o movimento eurocético da própria Suíça.
“A adoção da legislação da UE e das decisões do TJE alteraria o sistema de democracia direta na Suíça. Isso diminui nossa competitividade”, disse o diretor executivo da Kompass/Europa, Philip Erzinger. O grupo anti-UE, criado por bilionários do setor de investimentos privados e outros empresários, está reunindo assinaturas para lançar uma iniciativa para barrar, através de uma votação pública, a adesão.
“Por exemplo, você não precisa de um acordo sobre a livre circulação de pessoas para contratar pessoas de países estrangeiros”, acrescentou Erzinger.
O Partido do Povo Suíço, de direita, é contra o acordo. Já nas fileiras de esquerda, o pacto é visto com bons olhos. Os partidos centristas, como o Partido Liberal Radical, ainda não tomaram uma posição.
No horizonte, há possibilidades de retaliações se a Suíça negar o tratado. Em 2021, quando a Suíça se afastou das negociações, a UE retaliou rebaixando a participação suíça no Horizon Europe. Isso poderia acontecer novamente se o acordo não for ratificado até o final de 2028.
O comissário de comércio da UE, Maroš Šefčovič, se recusou a comentar sobre possíveis punições. Mas as autoridades da UE declararam ao jornal Financial Times que manter o status quo não era uma opção.
As autoridades suíças dizem que a erosão dos acordos bilaterais existentes poderia ter sérias consequências a longo prazo, por exemplo, em termos de capacidade de exportação suíça, segurança e transporte entre a Suíça e os países da UE.
“Se houver um “não”, a UE vai considerar o fim do caminho para a via bilateral e para o tratamento especial para a Suíça”, disse um funcionário familiarizado com a conjuntura de Bruxelas.
Ao mesmo tempo, há pessoas que acham que já é hora de fazer um acordo com o maior parceiro comercial da Suíça.
“Estamos vivendo esse drama desde os anos 90. A Europa é nosso maior parceiro comercial e precisamos resolver o problema institucionalmente, em vez de setor por setor”, disse Jean Keller, diretor da gestora de fundos Quaero Capital, com sede em Genebra.
“Sim, precisamos garantir que coisas como os direitos dos trabalhadores sejam protegidos, mas finalmente encontrar uma estrutura que seja durável para fazermos negócios na Europa é imperativo.”
Copyright The Financial Times Limited 2025
(Adptação: Clarissa Levy)
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