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Duas pátrias: tecendo relações entre a Suíça e o Brasil

A shot of the Copacabana at the exhibition
Passeando por Copacabana. Na Basileia. Marina Wentzel

Imagine cruzar o Atlântico sem perspectiva de voltar para casa. Qual o tamanho da coragem necessária para embarcar numa jornada esperançosa de que a vida do outro lado do oceano será melhor? 

Essa travessia é a realidade dos mais de 13.700 valentes suíços que residem no Brasil na atualidade, e de outros 81 mil brasileiros residentes na Suíça. Indivíduos imigrantes, que aceitaram o desafio de lançar-se no mundo face às incertezas.  

Agora imagine contar apenas com um amigo e uma pistola em tempos onde não existia a comunicação rápida da internet, o transporte seguro dos aviões e a conveniência instantânea dos cartões de crédito. Nessas condições, emigrar da Europa para a América do Sul era a aventura de uma vida.

E que vida! No caso aqui, estamos falando de Walter Wüthrich, comerciante de Basileia que aos 21 anos embarcou no porto de Antuérpia na Bélgica, rumo ao Rio de Janeiro em 1939. O jovem que ambicionava conquistar riquezas, veio a tornar-se pessoa-chave nas relações comerciais e culturais entre a Suíça e o Brasil. 

Walter Wüthrich
Walter Wüthrich Marina Wentzel

Um aventureiro pícaro, com uma biografia empolgantemente atribulada, Wüthrich é o narrador da exposição “Entre Duas Pátrias”, que aborda o tema universal da imigração através do olhar dele.

O psicanalista teuto-americano Erik H. Erikson definiu a identidade como a intersecção “entre o que uma pessoa quer ser e o que o mundo lhe permite ser” e foi para desafiar essas possibilidades pré-estabelecidas na sociedade suíça, que Wüthrich embarcou rumo ao Brasil. Acompanhado do amigo Gustav Baumann e secretamente armado, Wüthrich foi em busca da liberdade para inventar o personagem de si mesmo. 

Ao chegar no Brasil, o primeiro impulso do jovem foi curvar-se para beijar o solo, mas a pistola escorregou de seu bolso, disparando acidentalmente, fazendo com que Wüthrich passasse as primeiras noites tropicais na cadeia, penando pelo infortúnio. 

No diário, Wüthrich escreve em 12 de Setembro de 1939: “Gusti estava certo. Deveria mesmo ter atirado o raio da arma para o mar. Deslumbrado com a visão do Rio, infinitamente aliviado de ter escapado à guerra, ansiosíssimo pelo que estava por vir, tive de me ajoelhar imediatamente e beijar o solo abençoado do Brasil. E foi aí que ela caiu do bolso do meu casaco. Nem tive tempo de tirá-la do chão, já lá estavam dois policiais portuários, gritando comigo em português e girando meus braços para atrás das costas e clicando as algemas. Gusti jurou-me tirar da prisão após dois dias. Dito e feito. Em Gusti se pode confiar! E agora? Agora descansamos, dormimos numa cama na Pensão Suíça e depois, finalmente, a aventura vai começar”.

Eis aí a contradição que até hoje perpassa a sina dos imigrantes: sob uma perspectiva, meramente forasteiros encrenqueiros; sob outra, empreendedores promissores e comprometidos. 

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Schönbächlers

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Para onde emigram os suíços e suíças

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Comércio

Apesar dos percalços iniciais, o jovem acabou por triunfar no novo mundo e ficou muito rico com o comércio que promoveu entre a Suíça e o Brasil. Seu principal sustento foi a representação de máquinas de tecelagem Sulzer AG.

Em pleno processo de industrialização brasileira, Wüthrich e outros pioneiros teceram uma rede de contatos que contribuiu significativamente para a relação mercantil bilateral. Atualmente a corrente de comércio entre os Suíça e Brasil movimenta mais de CHF 3,5 bilhões por ano e a Suíça é superavitária, exportando CHF 2,1 bilhões. São CHF 700 milhões a mais do que os 1,4 bilhões que importa, de acordo com números de 2020 do Ministério das Relações Exteriores da Suíça.

A riqueza acumulada ao sul da linha do Equador permitiu a Wüthrich fundar postumamente a instituição Brasilea, em Basileia, para abrigar o acervo de mais de 500 obras do amigo e pintor austríaco Franz Josef Widmar, bem como promover a arte e a cultura brasileira na Suíça.

E é justamente nessa instituição, às margens do rio Reno, que é possível conferir a exposição “Entre Duas Pátrias”, uma mostra que contempla o amplo contexto da migração Suíça-Brasil através da história pessoal do patrono Wüthrich. 

A exibição é a primeira de uma série de quatro, onde cada qual irá explorar uma faceta do personagem Wüthrich. “O Comerciante”, “O Amigo” e “O Colecionador” deverão abrir as portas em 2023, 2024 e 2025. A mostra, que aborda “O imigrante” e introduz a quadrilogia, está em cartaz desde fevereiro e pode ser conferida até 20 de dezembro.

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Banner arquivos históricos da Rádio Suíça Internacional

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Imersão na viagem

Para os visitantes, “Entre Duas Pátrias” é uma imersão interativa e sensorial. Ao chegar, se é saudado pelo próprio personagem Walter, naquela que seria a sala de estar da família, no bairro de Neubad, Basileia. Entre malas e passaportes há uma cristaleira com a foto do pai, Dr. Ernst Wüthrich-Schneider, professor de ensino médio, e da mãe, Bertha Wüthrich-Schneider, que sofria de tuberculose e faleceu jovem. 

No seu núcleo familiar, o jovem Wüthrich enfrentou incompreensão pelos anseios aventureiros e oposição à decisão de emigrar. O pai queria que ele fosse austero e responsável como o irmão, Ernst Wüthrich-Dalang, que  se tornou professor.  

Seguindo adiante, o visitante encontra um corredor atapetado com vídeos e fotos da época. O contexto de 1939 era o de uma Suíça sedenta por resignificência, resistindo a pressões externas e necessitando unidade. Imagens mostram a exposição nacional de 1939, a Landi 39, com bandeiras de vilarejos da confederação helvética. A festividade marcou culturalmente aquele ano e foi também uma resposta identitária à ameaça nazista.

Para Wüthrich, porém, a resposta ao nazismo não era olhar para dentro, mas sim para fora. A curiosidade dele residia na desconhecida e exótica América do Sul, num extravagante Brasil, representado pelas imagens típicas do deslumbre nacionalista do Estado Novo de Getúlio Vargas, e das danças de Carmem Miranda e com o personagem Zé Carioca. 

Nesse ponto os visitantes são convidados a interagir com a exposição refletindo o real significado por trás da partida. Frases na parede indagam como reagiriam se estivessem na posição de Wüthrich: O que você faria às vésperas da guerra? “Deixaria tudo para trás?”, “Prestaria serviço no exército?”, “Seria um cidadão suíço leal?”.  

Em uma mesa interativa pode-se debater os motivos que desencadeiam decisões migratórias, interpretando diálogos e argumentos sobre os prós e os contras a respeito da decisão de partir. 

“É muito útil fazer esse exercício de encenação com as crianças para refletir sobre as causas que levam um indivíduo a deixar a sua pátria. A brincadeira tem sido especialmente relevante com as turmas escolares, onde refugiados da Ucrânia têm a oportunidade de dialogarem com os colegas suíços sobre a imigração involuntária que sofreram”, explica Tatiana Andrade Vieira, diretora executiva da fundação e organizadora da exposição. 

Letícia Venâncio, educadora e professora de pedagogia intercultural da Escola Técnica do Noroeste da Suíça (Fachhochschule Nordwestschweiz) visitou a exposição e se encantou com o que viu. Ela ressalta que em um país como a Suíça, onde quatro de cada dez pessoas têm origem estrangeira, é muito necessário debater a imigração de forma prática no contexto escolar.

“O número de crianças cujos pais ou famílias não são apenas suíças é cada vez maior. No cantão de Basileia Cidade, por exemplo, mais de 50% das crianças não têm o Alemão como idioma em casa”, ressalta. “A migração ainda é vista nas escolas por muitos professores como um desafio, como uma questão que o professor tem que saber lidar. Esse anseio demonstra ainda mais a relevância de uma exposição como essa”, opina Venâncio.

A viagem

Avançando na exposição, há uma linha do tempo rememorando os principais registros dos cinco séculos de história migratória de suíços para o Brasil. O destaque fica para as famílias do cantão de Friburgo, que em 1819 emigraram para o estado do Rio de Janeiro, onde fundaram a cidade de Nova Friburgo.

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Grupo de pessoas ao lado de estátua

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A seguir, visitantes de todas as idades podem entrar em uma cabine escura que simula o navio MS Copacabana. Com a projeção de fotografias da época e áudios com as narrativas dos passageiros lidas em primeira pessoa, recria-se a sensação de se estar de fato navegando rumo ao Brasil.

Desembarcando da sala escura que simula o navio, o visitante se depara com a chegada ao Rio. A recepção é celebrada pelo calçadão de Copacabana, com suas conhecidas ondas em preto e branco de pedras portuguesas. 

O Brasil eufórico das décadas seguintes: 1940 e 1950 estão imortalizados nessa última sessão, decorada com fotografias do austríaco de origem judaica Kurt Klagsbrunn. Médico de formação, Klagsbrunn emigrou de Viena na mesma época que Wüthrich deixou Basileia. Também fugindo do nazismo, ambos encontraram redenção nas areias cariocas.

É um Brasil maravilhoso que acolheu Wüthrich e o fez prosperar, que transparece pelas lentes de Klagsbrunn. É possível sentir a pulsante euforia da construção de Brasília, o luxuriante paisagismo de Burle Marx e o charme discreto da Bossa Nova. É o Brasil no seu melhor momento, antes do golpe militar de 1964. 

Na conclusão da exposição o visitante vai embora sentindo-se intrigado, querendo saber mais dos desdobramentos que uma simples decisão pessoal pode causar. Como um jovem que sai da Suíça ao acaso acaba por impactar toda uma geração de relações econômicas e culturais entre dois países? E que ponto fantástico a vida dele próprio se torna na tecelagem da história da Suíça e do Brasil! Somos todos pequenas urdiduras desse grande tecido.

“É sobre isso: debater e desencadear reflexões. Essa é uma exposição que permite muitas interpretações e a intenção é justamente deixar em aberto, para incluir todas as possibilidades de identidades que tiveram início lá atrás, com a emigração de Wüthrich, e que perduram até hoje”, pontua a diretora Tatiana Andrade Vieira.

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Edição: Balz Rigendinger

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Avião aéreo SWISS decolando

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