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Multinacionais compram startups para economizar tempo

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Entre cinco e dez crianças nascem anualmente na Suíça com atrofia muscular espinhal. Keystone / Sebastian Gollnow

Uma reportagem transmitida pela televisão suíça mostra que as multinacionais farmacêuticas suíças preferem comprar desenvolvimentos científicos do que realizá-los nos seus laboratórios.

Quando a FDA (Food and Drug AdministrationLink externo, a agência americana que regula fármacos e produtos alimentícios) aprovou o medicamento Zolgensma, no ano passado, o preço virou tema de manchetes. Trata-se de uma terapia genética em dose única para tratamento da atrofia muscular espinal (AME), uma doença genética incapacitante e frequentemente mortal que afeta sobretudo crianças pequenas. Ao custo de 2,1 milhões de dólares (2,1 milhões de francos suíços ou 9,44 milhões de reais), a dose injetável foi batizada de remédio mais caro da história.

O Zolgensma não deve manter esse título por muito tempo: atualmente há mais de 200 terapias celulares e genéticas em desenvolvimento. Isso desperta preocupação com a capacidade de sistemas de saúde sobrecarregados arcarem com os custos dessas curas “milagrosas”. 

Além de alegar custos de pesquisa e desenvolvimento, a Novartis justificou o preço do fármaco pelo seu valor em anos adicionais de vida, qualidade de vida e economia para os sistemas de saúde. 

Atrofia muscular na Suíça

Na Suíça, a cada ano, entre cinco e dez crianças nascem com atrofia muscular espinhal. Em média, um em cada 10 mil nascidos é afetado pela doença.

Isso, no entanto, deixou questões ainda não respondidas sobre o lucro que a Novartis e outras grandes farmacêuticas obtêm com tais remédios e sobre quem, em última análise, paga a conta de suas descobertas. 

Uma reportagemLink externo transmitida pela RTS (Canal da Televisão Pública na parte francófona) em fevereiro descobriu que as grandes indústrias farmacêuticas preferem investir na aquisição de empresas menores que possuam drogas em estágio avançado de desenvolvimento do que no desenvolvimento próprio.  

Das 16 grandes farmacêuticas investigadas, a Roche e a Novartis são as que mais recorreram a essas aquisições. As duas gigantes do setor de saúde com sede em Basel incorporaram, respectivamente, 49 e 45 empresas desde o ano 2000.

O caso Zolgensma

A história do Zolgensma ilustra uma tendênciaLink externo mais ampla do setor, pela qual medicamentos passam pelas mãos de diferentes pesquisadores – muitos dos quais recebem financiamento de universidades, instituições beneméritas ou contribuintes – antes de ser adquiridos em estágios avançados de desenvolvimento e entrar no portfólio de uma multinacional.

Em 2007, uma equipe de cientistas franceses do Centro GénéthonLink externo, que faz pesquisas sem fins lucrativos, descobriu um método de transmissão de genes saudáveis utilizando um vetor viral. Quando chegou a hora de transformar a descoberta em remédio, eles foram absorvidos pela startup americana AveXis, que investiu 530 milhões de francos suíços, comprou a patente e passou vários estágios, incluindo testes clínicos em humanos.

Em 2018, um ano antes da aprovação da droga pelo FDA, a Novartis arrebatou a AveXis e os direitos de comercialização do Zolgensma por 8,7 bilhões de francos suíços. Com essa aquisição, também adquiriu competências decisivas em terapia genética, especialmente no campo da neurociência.

Todavia, a diferença entre 530 milhões de francos suíços e a compra da AveXis com ágio de 72% sobre o preço médio das ações e, finalmente, o preço de US$ 2,1 bilhões pela Zolgensma, levanta questões.

Embora a Novartis afirme que, junto com a AveXis, investiu mais de US$ 1 bilhão no desenvolvimento do medicamento, incluindo os custos da ampliação dos testes clínicos e das instalações de produção, a empresa não arcou com os riscos inerentes aos estágios iniciais da descoberta de um novo fármaco.

Além disso, não apenas a Généthon foi financiada por uma associação sem fins lucrativos, mas também o fundador da AveXis recebeu US$ 6,3 milhões em financiamento público para suas pesquisas nos Estados Unidos ao longo da carreira. Outra patente adquirida pela farmacêutica também recebeu quase US$ 120 milhões em financiamento público dos Estados Unidos. 

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Aquisição como pesquisa

O Zolgensma não é um caso isolado: de acordo com a reportagem da RTS, 39 novos compostos ativos validados desde 2018 na Suíça por grandes indústrias farmacêuticas, pelo menos 27 foram comprados quando já estavam em estágios avançados de desenvolvimento (fase 3 dos testes clínicos). Só 30% dessas drogas, portanto, foram desenvolvidos nos laboratórios das grandes companhias.

No caso da Novartis, nenhuma dos seis remédios aprovados na Suíça foi desenvolvida nos seus próprios laboratórios. No portfólio da empresa, a RTS descobriu que 27 eram resultado de aquisições e apenas 22 podiam ser considerados produtos “da casa”.

Um porta-voz da Novartis explicou à swissinfo.ch que, “como acontece em qualquer grande empresa farmacêutica, nosso portfólio contém programas obtidos por aquisição de uso da marca (in-licensing), mas acreditamos que é devidamente equilibrado com medicamentos inovadores originários de nossos laboratórios.” Entre os remédios descobertos e desenvolvidos em laboratórios próprios nos últimos anos estão o Consentyx, analgésico para dores artríticas, e o Mayzent, para tratamento de esclerose múltipla.   

A Novartis acrescentou que investe aproximadamente nove bilhões de francos suíços por ano em pesquisa e desenvolvimento, um dos maiores orçamentos do setor para pesquisa e desenvolvimento. Mais de um terço desse total é gasto na Suíça. 

Aquisições da Novartis. Veja AQUILink externo as aquisições das 16 empresas

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RTS

Se a Novartis e a Roche lideram a lista em termos numéricos, comprar drogas promissoras de terceiros para impulsionar as vendas é uma estratégia adotada por várias outras empresas, o que está fazendo os preços subirem.

Em 20 anos, os 16 grupos analisados pela RTS compraram 315 empresas por um valor total que supera 1,2 trilhão de francos suíços. Isso inclui a compra da Pharmacyclis pela americana AbbVie por mais de 20 bilhões de francos suíços, em 2015, e a aquisição da Kite Pharma pela Gilead, por 11 bilhões de francos suíços, que garantiu seu acesso ao Yescarta, uma terapia genética contra um tipo de linfoma. 

Para Bertrand Kiefer, médico e editor-chefe do Swiss Medical Journal, “as empresas são rivais umas das outras, o que aumenta os preços.” Ele acrescenta: “É preciso acabar com esse clima insalubre e antiético no setor de saúde. Não estamos falando de um iPhone com tela melhorada. Estamos falando das vidas de crianças.”

Para mais informações e metodologia, clique AQUILink externo para assistir a reportagem completa da RTS

Loteria polêmica

Em dezembro, a Novartis anunciou o lançamento de um programa de acesso administrado ao Zolgensma que permitiria seu uso em países onde o medicamento ainda não foi aprovado pelas autoridades de saúde locais. Como parte dele, a empresa destinaria até 100 doses únicas por ano gratuitamente, por meio de seleção aleatória de pacientes que tenham indicação médica para receber o tratamento.  

Questionada pela swissinfo.ch, Novartis declarou que o programa se baseia nos princípios da justiça, da necessidade clínica e da acessibilidade visando a mais equitativa distribuição global de um número limitado de doses sem que haja favorecimento de uma criança ou de país em detrimento de outro.  

Mas esse programa em moldes de loteria atraiu críticas consideráveis de grupos de defesa dos direitos de pacientes e autoridades de saúde, que argumentaram que ele pode ter consequências emocionais desastrosas para famílias e que ainda há dúvidas sobre a segurança do medicamento.

EntrevistadaLink externo pelo jornal dominical suíço NZZ am Sonntag, a especialista em ética médica Tanja Krones, do Hospital da Universidade de Zurique, afirma que são os governos que devem negociar a distribuição nos países e não a empresa, diretamente, com médicos e pacientes individuais.

Em carta de 5 de fevereiro, a Novartis anunciou que está reexaminando o formato do programa em conjunto com defensores dos direitos dos pacientes e médicos.

Adaptação: Lucia Boldrini

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