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O cinema suíço vive no estrangeiro

Cena de Antes do fim do verão, de Maryam Goormaghtigh
A vida para além do script: os três iranianos do documentário "Avant la fin de l'été" interpretam sua própria história Intermezzo Films, Genebra

Dos 15 filmes suíços exibidos no 13° Festival de Cinema de Zurique (Zurich Film Festival, ou ZFF), apenas um terço deles foram feitos por diretores suíços vivendo no país. Essa proporção reflete uma tendência no panorama cinematográfico local, onde as co-produções internacionais tornaram-se o principal modelo de negócio, boa parte dos jovens realizadores são filhos de imigrantes, de casamentos mistos, ou nascidos no exterior - e muitos, se não a maioria deles, vivem e trabalham no estrangeiro.

O 13º Festival de Cinema de Zurique (ZFF), ocorrido entre 28 de setembro e 8 de outubro, atinge sua maturidade como um dos principais eventos anuais na agenda cultural da maior micrópolis suíça, trazendo uma nova leva de produções nacionais mais abertas à experimentação e questões globais do que a insularidade proverbial do país.

A diretora suíça baseada em Berlim Katharina Wyss
Natural de Friburgo, baseada em Berlim: Katharina Wyss, diretora de “Sarah joue un loup-garou” (Sarah interpreta um lobisomem) Intermezzo Films, Genebra

Ao contrário de outros festivais de cinema suíços tradicionais, como Locarno e Visions du Réel (Nyon), o Festival de Cinema de Zurique é geralmente mais centrado em estreias comerciais, o seu vistoso Tapete Verde irradia o fascínio das estrelas de Hollywood e um punhado de figurões da indústria. Isso até funciona para cativar o grande público, mas nos últimos anos a organização tem ousado cada vez mais ao dar mais atenção aos realizadores e cinéfilos locais. Nesse sentido, a seleção de filmes suíços no programa deste ano reflete uma mudança geracional, marcada por uma diversidade social ainda não reconhecida nas instituições suíças e na mídia nacional.

“As pessoas falam muito sobre o cinema suíço aqui, e de uma maneira muito nacionalista. Mas eu não não sou nada nacionalista na minha percepção do mundo”, disse para swissinfo.ch a cineasta suíça baseada em Berlim Katharina Wyss, diretora de Sarah Joue un Loup-Garou (Sarah interpreta um lobisomem), seu primeiro longa-metragem. “Dito isto, meu filme é muito ‘fribourgeois’, ele é geografica e pessoalmente circunscrito a Friburgo, e alimentado por essa cidade, que é de onde eu venho. Mas eu também carrego essa longa cultura europeia, especialmente a cultura germanófila e francófila com a qual cresci e deixa o meu trabalho com um sotaque eminentemente europeu, em contraste com o cinema americano”.

Wyss se mudou da Suíça para Berlim aos 19 anos, como muitos na área criativa que sentem muito rapidamente que a Suíça é muito pequena e insular para seus interesses artísticos. “Eles não são apenas muitos, provavelmente são a maioria”, disse o produtor Luc Peter, da Intermezzo Films (Genebra), quando perguntado sobre cineastas suíços que vivem e trabalham no exterior. Além do filme de Katharina, Peter trouxe outro bem-vindo sopro de ar fresco cinematográfico ao festival, Avant la fin de l’été (Antes do fim do verão), também estreia da diretora franco-belga-suíço-iraniana (não necessariamente nesta ordem), Maryam Goormaghtigh.

“Eu não sabia quase nada do cinema suíço – eu só comecei a conhecê-lo quando morava em Paris. Talvez seja porque meus pais sempre foram estrangeiros aqui. E em Paris eu comecei a fazer algumas co-produções com a Suíça e só assim descobri como funciona o sistema suíço, e o quanto ele é diferente da indústria francesa “.

Goormaghtigh é o nome flamengo do pai de Maryam, um franco-belga que se casou com uma iraniana e vive em Genebra, onde Maryam nasceu e cresceu. Ela saiu da Suíça aos 22 anos para estudar em Bruxelas e depois se mudou para Paris. “Eu realmente precisava sair da Suíça, descobrir outros países. O que é normal quando você é jovem e Genebra é muito entediante. Mas agora, depois de muitos anos em Paris, estou muito feliz por voltar, especialmente porque a cidade é calma e pacífica “, diz Goormaghtigh, que ainda é jovem (35 anos), mas agora espera seu primeiro filho.

Film Fell in Love with a Girl
Cena do documentário “Fell in love with a Girl” (Apaixonei-me por uma garota), do diretor americano-suíço Kaleo La Belle Kaleo La Belle

Deslocados

Fell in Love with a Girl (Apaixonei-me por uma garota), do americano-suíço Kaleo La Belle, é um documentário profundamente pessoal que levou mais de sete anos para ser realizado. O filme arrisca transformar a exposição íntima em uma forma de arte, mas ele nada tem a ver com o narcisismo das redes sociais. “Eu acredito que a diferença está na motivação. Não se trata de tornar a minha vida um tema, mas sim de reconhecer certos temas da minha vida que são importantes ou relevantes para o público geral”, disse La Belle para swissinfo.ch em uma longa discussão entre uma sessão e outra.

Para alguém que nasceu no Havaí, morou em Nova York e Detroit, e mudou-se para a Suíça há 20 anos, o deslocamento é uma condição natural e não algo a ser tematizado em arroubos de nostalgia ou de exílio. “Meu lar é onde está a minha cama”, e a cama de La Belle está em Zurique agora. Identidades nacionais são secundárias a questões mais universais, que são ao mesmo tempo bem pessoais. O foco das histórias de La Belle é a família. “O núcleo familiar está mudando, e não apenas por pressões econômicas. O modelo tradicional de dois pais e suas crianças não é mais a ordem natural”.

La Belle diz que, quando se mudou para Lucerna há 20 anos, ele logo percebeu que “a Suíça não tinha conteúdo para mim, meu conteúdo estava em outro lugar”. No entanto, não se pode dizer que seu trabalho esteja fora de sintonia com a produção atual da Suíça – e é no campo dos documentários que o cinema suíço mais se destaca. La Belle está em boa companhia.

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Antes do fim do verão, de Goormaghtigh, é uma coprodução franco-suiça, em que três iranianos vivendo na França caem na estrada em uma viagem de despedida para um deles, Ashraf, que se encheu da Europa e decidiu retornar ao Irã. O filme é um documentário roteirizado que entorta os limites usuais do gênero – Goormaghtigh passou três anos com os três jovens, registrando suas vidas como imigrantes até que Ashraf decidiu ir embora, fornecendo um motivo narrativo para um filme. 

Não foi fácil para Goormaghtigh convencer o Departamento Federal de Cultura a financiar seu projeto como um documentário, mas no fim o filme foi aprovado. Afinal, até mesmo as instituições mais burocráticas estão começando a se dar conta das rápidas mudanças neste campo.

Cena do documentário A gentrificação sou eu, de Thomas Haemmerli
Edifício da era soviética em Tblisi (Geórgia) retratado no documentário “A gentrificação sou eu”, do diretor suíço Thomas Haemmerli Thomas Haemmerli

Outro bom exemplo é Die Gentrifizierung bin ich (A gentrificação sou eu), de Thomas Haemmerli, um hilariante documentário onde o autor traça sua própria trajetória, de agitador radical nos anos 70 e 80 envolvido em ocupações de sem-teto, a agente pequeno-burguês da gentrificação na Cidade do México, São Paulo , Zurique e Tbilisi (Geórgia). O lar de Haemmerli é onde está o seu laptop, e ele usa o documentário como uma plataforma onde mistura registro pessoal, incursões ensaísticas e uma colagem de ideias e livre-associações. Não obstante a experiência de Haemmerli e as conexões com a cena da TV suíça, é difícil imaginá-lo trabalhando com tanta liberdade em outros países.

Enquanto isso, no mundo da ficção…

… a cena suíça é mais fragmentada e a capacidade de atingir o público no exterior é mais limitada. Blue my mind (Minha mente azul) de Lisa Brühlmann (vencedor do ZFF Focus: Prêmio Suíça, Alemanha, Áustria) e Let the old folks die (Deixe os velhos morrer) de Juri Steinhart podem até conseguir algum retorno dentro da Suíça, mas dificilmente conseguem ir além dos limites de seus próprios mundinhos e, dramaticamente, parecem projetos de graduação da escola de cinema.

Mas ainda pode-se encontrar algumas pérolas entre as produções 100% nacionais – como por exemplo Die letzte Pointe, do veterano Rolf Lyssy – mas é nas co-produções internacionais que os suíços estão se dando melhor. Mesmo que o tema seja eminentemente suíço.

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Sarah interpreta um lobisomem, co-produção alemã-suíça, é provavelmente um dos filmes mais perturbadores desta recente safra, pois trata de um antigo “mal-estar” suíço cujos sintomas são bem conhecidos, e não limitados à Suíça: abuso, suicídio, moralismo, tabus sexuais (o “non-dit”), etc. Enquanto Kaleo La Belle explora a construção de novas formas de arranjos familiares, a diretora Katharina Wyss implode o modelo tradicional. “A família suíça costuma ser um pequeno universo muito preocupado em passar a imagem de um organismo que funciona bem, de outra maneira há um medo enorme de que, se a impressão externa for negativa, toda a estrutura pode sucumbir por dentro”, diz ela.


​​​​Segundo Katharina Wyss, é aí que pega a metáfora com o país: “A Suíça também sempre se viu em uma posição muito frágil, cercada por grandes potências, tendo que desenvolver estratégias astutas para sobreviver. Mas a um custo: eu percebo aqui um estado paranoico de existência, como se estivéssemos sempre vivendo na iminência de algo terrível prestes a acontecer – porque já está acontecendo ao lado, nos países vizinhos”. Assim, a geopolítica é refletida no núcleo familiar, e Wyss aponta que, sob a superfície plácida, a sociedade suíça é extremamente violenta, como observou à sua volta durante sua própria adolescência: suicídios, anorexia, bulimia, internações psiquiátricas – “manifestações de um mal-estar mais profundo em uma idade muito tenra”.

Katharina Wyss diz que está extremamente ligada a Berlim e aos fantasmas desta cidade – seu próximo filme é uma história de espionagem – mas se diz contente em poder usar sua educação suíça no desenvolvimento de um estilo pessoal que dialoga tanto com a tradição quanto com a ruptura. Não surpreendentemente, suas referências visuais são principalmente os mais notórios artistas sombrios suíços, dos românticos dos séculos 18 e 19 (Arnold Böcklin, Henry Fuseli) até o criador do décor de Alien, H.R. Giger (1940-2014). 

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O lado escuro da mente também se encontra no longa Animais, de Greg Zglinski, uma co-produção suíço-polonesa-austríaca. Trata-se de um thriller psicológico que poderia facilmente ser um filme de Roman Polanski (Polanski, por sinal, é polonês e atualmente mora na Suíça). O filme foi muito bem recebido pelo público do festival e é um dos principais títulos incluídos em um grupo de filmes suíços que viajará para diversos festivais em todo o mundo, e cuja próxima parada é na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a partir de 19 de outubro. 

swissinfo.ch também estará lá.

A tradição suíça

Existe uma longa tradição de cinema documentário na Suíça, e uma ampla variedade de canais de financiamento: fundos estatais são disponíveis nos níveis federal, cantonal e municipal. Há ainda os fundos culturais Pro Helvetia, fundações privadas, bancos, e escolas de arte. O financiamento geralmente vem com poucas condições, dando aos cineastas bastante liberdade criativa, mesmo quando eles atravessam os limites entre ficção/não-ficção, ou fazem encenações ou reencenações para contar uma história verdadeira. Esse não é o caso em muitos outros lugares, como os EUA, onde os canais a cabo e on-line, seja HBO, Netflix ou National Geographic Channels, costumam assumir o controle absoluto dos projetos, incluindo o direito de demitir o diretor ou criador se ele ou ela não se submete às exigências dos executivos.

A única falha no sistema suíço, de acordo com os diretores e produtores entrevistados por swissinfo.ch, está na distribuição. A maior parte do apoio oferecido está na fase de produção, mas as instituições de financiamento e até a televisão suiça, que se associa a uma quantidade considerável de documentários, não fornecem bases concretas para a distribuição. Isso significa que um enorme pedaço da produção cinematográfica suíça não atinge o seu público.

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