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“Não é um esporte para meninas”: a longa luta em busca de reconhecimento

Zweikampf zwischen der Alpnacherin Trix Fischer, links, und der Bernerin Helga Fischer, am 22. Juni 1975 in Buochs.
Duelo entre Trix Fischer, de Alpnach, à esquerda, e Helga Fischer, de Berna, em 22 de junho de 1975, em Buochs. Keystone / Eugen Suter

Demorou muito até que o futebol feminino se tornasse socialmente aceito na Suíça. Foi um caminho cheio de percalços – e também de comentários estúpidos.

“O esporte feminino é indecente e nocivo para a apresentação da mulher. Ela tem filhos e casa para cuidar. A competição pertence ao homem”. Esse era o universo masculino há 100 anos. As mulheres que competiam entre si eram malvistas. 

“Quando alguma mulher praticava esportes, era em função do privilégio de pertencer à classe alta”, explica Marianne Meier, historiadora e pedagoga do esporte da Universidade de Berna. Meier cita como exemplo o caso do “Les Sportives”, um grupo de mulheres de Genebra que eram entusiastas do futebol.

A mentora do clube era filha de uma família abastada. Os treinos aconteciam no jardim da mansão de seus pais. Um jornal de Genebra especializado em esportes chegou a noticiar tais atividades desportivas, mas, pouco depois, o interesse público a respeito viria a desaparecer. O “Les Sportives” acabou se dissolvendo.

Bem-vindas como juízas

Depois disso, houve uma ampla lacuna no que diz respeito à presença das mulheres no universo do futebol. Durante um longo tempo, praticamente não se falou sobre futebol feminino. A imagem conservadora da mulher permaneceu ancorada nas mentes dos homens até 1963, quando duas irmãs de Aargau deram uma chacoalhada na situação. Monika e Silvia Stahel fundaram o FC Goitschel e venceram os torneios de Grümpel, inclusive contra equipes masculinas.

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Como nasceu o futebol na Suíça

Este conteúdo foi publicado em A história do futebol suíço remonta ao século 19, quando os laços internacionais do país ajudaram a disseminar esse esporte apaixonante.

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A solicitação das Irmãs Stahel para poder disputar os jogos oficiais foi, contudo, revidada pela Federação Suíça de Futebol. Em contrapartida, as duas receberam pelo menos permissão para se tornarem juízas. Ambas aceitaram a oferta e se tornaram as primeiras mulheres a exercer essa função no país.

Apelidada de montanha loura

Os homens é que tomavam as decisões. Isso ficou evidente também no caso Madeleine Boll. Natural do cantão de Valais, ela foi a primeira mulher a obter uma licença de jogadora de futebol na Suíça – isso em 1965. A Federação acreditou que se tratava de um menino de cabelos loiros, mas percebeu logo o erro e foi “corrigi-lo”. 

Madeleine Boll und eine Gegnerin auf dem Rasen
Madeleine Boll (à direita) foi a primeira jogadora de futebol suíça a atuar com sucesso no exterior. Keystone

Segundo a Federação na época, os troféus só podiam ser entregues a jogadores e não a jogadoras. Além disso, de acordo com os argumentos usados naquele momento, o futebol não seria, sob o ponto de vista da Medicina, um esporte adequado para garotas. Mas Madeleine Boll não se deixou deter por essa “proibição prática de jogar futebol”. Anos depois ela decolou na Itália – na época a Meca do futebol feminino.

Boll ficou conhecida como “montagna bionda” (montanha loira). Dessa forma, acabou gerando um movimento também em sua terra natal. 

Enfim, um primeiro clube

Três anos mais tarde aconteceria o próximo episódio precursor: a fundação do primeiro clube de futebol feminino da Suíça. Algo que se deu quase por acaso, como conta Trudy Streit, uma das fundadoras. Pois até então ela praticamente não tinha nenhuma ligação com esse esporte.

Aos 14 anos de idade, Streit exercitava ao lado de sua irmã mais velha, Ursula, no Clube de Atletismo que ficava ao lado do Futebol Clube de Zurique. “Quando um dia a bola voou para o nosso lado, começamos a jogar – e gostamos”, lembra a desportista. 

Trudy Streit
Trudy Streit, co-fundadora do primeiro clube de futebol feminino da Suíça. SRF

As mulheres tiveram naquele momento a sorte de encontrarem os homens certos. Edi Nägeli, então presidente do FC Zurique, disponibilizou para elas um lugar para treinar. Através de anúncios de jornal, procuraram “mulheres abaixo dos 80 anos que querem se agregar”. 

Foi assim que, no dia 21 de fevereiro de 1968, era fundado o Clube de Futebol Feminino de Zurique. Em breve já aconteceriam partidas contra outras equipes femininas. Trudy Streit, contudo, não propagava seu hobby aos quatro ventos. “Na escola, eu não contava que jogava futebol”, relata. 

Pois isso sempre gerou comentários estúpidos. “Um cara ficava nos observando regularmente. Fui até ele um dia e disse como isso me deixava feliz. Aí ele respondeu que só assistia ao futebol feminino, porque gostava de ver os seios das jogadoras balançando”. Streit lembra que ficou chocada.

Camisetas sem nomes nem números

Em 1970, as mulheres ganharam seu próprio campeonato, formado por 18 equipes distribuídas em três regiões do país. As meninas do FC Aarau foram as primeiras campeãs nacionais. Elas dominaram as primeiras disputas, tendo abocanhado quatro títulos em série. 

In Gelb: Foto des ersten weiblichen Schweizer Fussballnationalteams.
Elas mesmas tiveram que costurar a cruz suíça: “Foto da equipe” da primeira seleção feminina de futebol da Suíça. Keystone / Str

No entanto, elas praticamente não receberam o reconhecimento dos homens. No lugar disso, precisavam ouvir comentários depreciadores: na mídia, falava-se “daquele ser que saltita atrás da bola”. Ou seja, as mulheres continuaram obrigadas a suportar muita coisa.  

Outro episódio inesquecível, segundo a historiadora Marianne Meier, foi o primeiro jogo internacional oficial que aconteceu na Basileia: “As mulheres receberam camisetas sem números nem nomes, porque a Federação não conhecia as jogadoras”. A cruz suíça foi enviada a elas pelo Correio. “As mulheres tiveram que costurar elas mesmas o símbolo sobre o uniforme, já que se partia do princípio de que sabiam como fazer isso”, relata Meier. 

Enfim, um lugar reconhecido

As mulheres foram aceitando tudo e seguiram seu caminho. Este levou à integração do Campeonato Feminino à Federação Suíça de Futebol no ano de 1993. Um passo necessário, porque o campeonato feminino lutava constantemente com problemas financeiros, de organização e recursos humanos.

Foi um passo simbólico, porque as mulheres passaram, naquele momento, a fazer realmente parte da Federação. E foi um passo que moveu muita coisa, sobretudo o incentivo à prática entre as jovens. A Federação de Futebol lançou uma Copa Júnior Feminina e acabou com a categoria “Piccola”. As meninas jogavam contra os meninos. E ganharam um centro próprio de formação. 

De opositores a torcedores 

A Copa do Mundo de 1990 foi também importante para o futebol feminino. O desempenho das principais equipes dos EUA, da China e da Noruega despertaram o interesse da mídia.

A Suíça só passaria a participar do Mundial a partir de 2015, mas conseguiu se qualificar regularmente para os grandes torneios. A constância e o sucesso são as chaves para obter reconhecimento, diz Marianne Meier. Segundo ela, é também preciso haver mais mulheres no topo. E elas precisam ter condições de viver de futebol no país, completa a historiadora.

Zwei Fussballerinnen auf dem Rasen
A equipe nacional feminina da Suíça participa regularmente dos principais torneios desde a Copa do Mundo de 2015. Na imagem: Rachel Rinast (à direita) no jogo contra o Canadá. Keystone / Salvatore Di Nolfi

A pioneira Trudy Streit tem hoje 70 anos. Longe do campo, ela diz que não consegue mais acompanhar o esporte. “Muita coisa mudou do ponto de vista atlético e técnico”, acrescenta. Fora do gramado, ela continua sendo uma presença constante. 

Como por exemplo quando sua neta está em campo –  e não é  ridicularizada por isso. Nessas alturas, os ventos são outros. “Muitos homens me dizem que estão impressionados com as jogadoras e se tornaram torcedores de verdade”, completa.

Graças a mulheres como Trudy Streit, que sedimentaram o caminho do futebol feminino na Suíça, é que existem cada vez mais vozes como a desse torcedor. 

Ouça aqui a peça radiofônica do programa “SRF Zeitenblende” do dia 1° de julho de 2023:

Conteúdo externo

Adaptação: Soraia Vilela

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