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Consumidores continuam comprando comida que os deixa doentes

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Helen James / SWI swissinfo.ch

 Um percentual de 10% da população mundial adoece após ingerir alimentos contaminados e 420 mil pessoas morrem todos os anos por isso. É possível reduzir esse risco a zero? Governos e empresas fazem o suficiente?

A Suíça é conhecida em todo o mundo por seu queijo, mas pouco se sabe que muita gente já morreu por causa dele.

Em 1987, no cantão de Vaud, 18 pessoas perderam suas vidas devido a um surto de listeriose, causado pelo consumo do queijo Vacherin Mont-d’Or, feito com leite cru.

Em 2005, no cantão de Neuchâtel, duas pessoas também morreram por listeriose em decorrência do consumo de um queijo tomme fabricado localmente. Duas mulheres sofreram um aborto espontâneo em decorrência desse surto.

A listeriose também foi a causa de dez mortes entre 2018 e 2020 devido ao consumo de um queijo brie contaminado, fabricado por uma empresa no cantão de Schwyz.

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A listeria é a maldição da indústria alimentícia, visto que essa bactéria é resistente ao congelamento, ao calor e ao sal. Os alimentos refrigerados com longo prazo de validade correm maior risco, bem como a carne crua e os laticínios.

Embora seja uma doença relativamente rara (com 0,1 a dez casos por milhão de pessoas por ano, dependendo da região), a listeriose é potencialmente fatal, com uma taxa de mortalidade de 20% a 30%, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Comer o quê?

Essa reportagem faz parte de uma série de artigos para abordar os diferentes aspectos da indústria alimentícia do ponto de vista do consumidor.

Mesmo sendo um país pequeno, a Suíça ocupa um lugar importante na cadeia global de alimentos, visto é a sede de gigantes do setor de alimentos e agricultura, como a Nestlé e a Syngenta, bem como de grandes grupos produtores de chocolate e laticínios.

O país está também se posicionando como um centro de tecnologia de alimentos, com muitas startups e uma incubadora própria, a Swiss Food and Nutrition Valley.

A Suíça é também o centro europeu de muitas empresas de commodities que lidam com produtos alimentícios como soja, cacau, café e óleo de palma (azeite de dendê).

As possíveis fontes de infecção com a listeria podem estar em alimentos de origem animal (tais como carnes, frios, peixes, leite cru e laticínios, especialmente queijo), mas também em produtos de origem vegetal (como saladas embaladas).

Na maioria das pessoas saudáveis, a infecção transcorre geralmente de forma leve e inclui sintomas semelhantes aos da gripe ou diarreia. Muitas vezes, não há qualquer sintoma. Em pessoas com um sistema imunológico fragilizado, podem ocorrer diversos sintomas graves, incluindo meningite, septicemia ou pneumonia, que requerem tratamento com antibióticos. Mulheres grávidas têm 20 vezes mais chances de contrair a doença, o que representa risco de aborto espontâneo.

Doenças transmitidas por alimentos

As doenças transmitidas por alimentos podem causar sintomas de curto prazo, como náusea, vômito e diarreia (comumente chamados de intoxicação alimentar), mas também podem causar doenças de longo prazo, como câncer, insuficiência renal ou hepática, além de distúrbios cerebrais e neurológicos.

Essas doenças podem ser mais graves em crianças, mulheres grávidas e pessoas mais idosas ou com sistema imunológico fragilizado. As crianças que sobrevivem a algumas das doenças mais graves transmitidas por alimentos podem apresentar atraso no desenvolvimento físico e mental, o que pode afetar permanentemente sua qualidade de vida.

As doenças que envolvem a diarreia como sintoma são responsáveis por mais da metade do volume global de doenças transmitidas por alimentos, causando enfermidades em 550 milhões de pessoas e 230 mil mortes todos os anos.

A diarreia é geralmente causada pela ingestão de carne crua ou mal cozida, ovos, produtos frescos e laticínios contaminados por norovírus, campylobacter, salmonela não tifoide e escherichia coli patogênica.

Outras enfermidades importantes que contribuem para o volume global de doenças transmitidas por alimentos são a febre tifoide, a hepatite A, a tênia solium (solitária) e a aflatoxina (produzida por mofo em grãos armazenados de maneira inadequada).

Certas doenças, como as causadas por salmonela não tifoide, são uma preocupação de saúde pública em todas as regiões do mundo, tanto em países de alta quanto de baixa renda média.

Outras enfermidades, como a febre tifoide, a cólera alimentar e aquelas causadas por escherichia coli patogênica, são muito mais comuns em países de renda média baixa, enquanto a campylobacter é um patógeno importante em países de renda média alta.

Fonte: Organização Mundial da Saúde (OMS)

Perfil genético

A velocidade do combate é essencial quando se trata de conter surtos de listeriose. No início de julho do ano passado, um número excepcionalmente alto de casos foi detectado pelas autoridades suíças. Foi iniciada uma investigação e, em questão de dias, 20 casos foram vinculados a uma fábrica que produzia truta defumada. A fábrica foi temporariamente fechada e o produto foi recolhido, pondo fim ao surto que custou uma vida.

Como as autoridades responsáveis pela segurança alimentar detectaram a fonte de contaminação tão rapidamente? A listeriose é uma doença de notificação obrigatória na Suíça, o que significa que médicos e laboratórios têm obrigação de relatar os casos, especialmente quando acumulados, às autoridades. Desde 2020, os pacientes têm sido ativamente incorporados ao protocolo de surtos.

As pessoas que sofrem de listeriose são sistematicamente entrevistadas sobre seu consumo de alimentos por meio de uma pesquisa. Análises laboratoriais detalhadas são realizadas em amostras coletadas. Isso inclui uma análise genética dessas amostras e a realização do sequenciamento do genoma completo. Esse procedimento possibilita a detecção de grupos potencialmente originários da mesma fonte.

Além disso, o Departamento Federal de Segurança Alimentar e Veterinária criou uma plataforma digital para a investigação de surtos de doenças transmitidas por alimentos, a fim de garantir que medidas rápidas sejam tomadas.

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“Ainda é muito difícil estabelecer ligações entre a intoxicação alimentar de grupos de pessoas e suas origens. O programa do governo e os avanços nas técnicas de análise devem ajudar a melhorar o sistema de gerenciamento de casos de intoxicação alimentar em grupo”, afirma Patrick Edder, vice-presidente da Associação Suíça de Químicos Cantonais. 

Felizmente, para os consumidores, a listeriose é rara em termos de número de casos. Outras bactérias – como a echerichia coli, a campylobacter e a salmonela – são responsáveis pela maior parte dos casos de intoxicação alimentar na Suíça.

Nenhum progresso em 10 anos

No entanto, apesar de normas rígidas de higiene, parece que as doenças transmitidas por alimentos, relatadas por profissionais da área médica na Suíça e que exigem tratamento médico, não diminuíram.

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Edder apresentou alguns motivos para a estagnação das estatísticas. “Em um período de 20 a 30 anos, pode-se até dizer que a incidência de intoxicação alimentar causada por salmonela caiu drasticamente, como resultado das exigências de segurança alimentar e das campanhas de informação relacionadas ao consumo de ovos crus. No caso da escherichia coli, houve realmente um crescimento acentuado, mas isso reflete um aprimoramento nos métodos de análise e não um aumento no envenenamento”, afirmou Edder.

Edder aponta práticas insuficientes de higiene no espaço doméstico durante a preparação de alimentos, bem como produtos insuficientemente cozidos. Na maioria dos casos, conservação e armazenamento ineficientes de alimentos foram as causas do problema. A campilobacteriose, por exemplo,  é frequentemente associada a aves mal cozidas quando grelhadas em uma churrasqueira. 

Isso dificulta a prevenção de surtos. De acordo com a OMS, um total de 10% da população mundial adoece após ingerir alimentos contaminados e 420 mil pessoas morrem todos os anos.

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“Infelizmente, em muitos países, as autoridades não controlam tanto quanto deveriam. Na Alemanha, por exemplo, mais de 30% das inspeções obrigatórias de empresas ligadas ao setor de alimentos não são realizadas, porque as autoridades enfrentam uma falta evidente de pessoal”, diz Dario Sarmadi, da Foodwatch, uma ONG europeia que expõe as más práticas do setor alimentício.

Indústria alimentícia com problemas 

Na Suíça, segundo o Sistema de Alerta Rápido para Alimentos e Rações (RASFF) da Comissão Europeia, o número de produtos alimentícios recolhidos do mercado neste ano (71 até 25 de outubro) já ultrapassou o número total de 2022 (62 produtos). De acordo com a lei suíça que regulamenta produtos alimentícios, a multa máxima que pode ser imposta por negligência que leve à contaminação de alimentos é de 20 mil francos.

Em função de sua presença internacional, a indústria alimentícia na Suíça pagou muito mais do que isso. Em junho do ano passado, a fabricante de chocolates Barry Callebaut teve que suspender a produção em sua fábrica de Wieze, na Bélgica, depois que uma salmonela foi detectada na lecitina, um ingrediente que dá suavidade ao chocolate. A produção de chocolate só pôde ser totalmente retomada em outubro de 2022, o que custou à fábrica quase 77 milhões de francos suíços.

Apesar do alto custo da paralisação, é provável que a Barry Callebaut tenha economizado dinheiro com suas ações ao evitar um recall de produto. Para fins de comparação: estima-se que, em 2022, a manteiga de amendoim da empresa americana Jif, recolhida do mercado devido a uma contaminação por salmonela em uma instalação de Kentucky, tenha custado à empresa 125 milhões de dólares.

Outra gigante suíça do setor que pagou um preço alto pela contaminação de alimentos foi a Nestlé. A pizza congelada contaminada, produzida por uma fábrica de propriedade da Nestlé na França, deixou 75 crianças hospitalizadas em março de 2022. Duas mortes foram atribuídas ao alimento contaminado. Acredita-se que a farinha contaminada com escherichia coli tenha causado as enfermidades.

A Nestlé não só teve que recolher todas as pizzas congeladas da marca Fraîch’Up Buitoni das prateleiras dos supermercados da França, como foi também levada a tribunal por 63 vítimas francesas que exigiram 250 milhões de euros em indenizações. A multinacional suíça acabou resolvendo o caso fora dos tribunais, mas teve que fechar a fábrica em Caudry, no norte da França, em março deste ano, devido às baixas vendas após o escândalo.

A culpa pode estar nas tentativas de maximizar a produção e reduzir custos. Uma investigação feita pela Radio France revelou que as operações de limpeza da fábrica da Nestlé haviam sido reduzidas de oito horas para menos de cinco horas por dia a partir de 2015 – com o intuito de aumentar a produção. A limpeza anual de grande porte, feita no verão europeu (quando a fábrica fecha) havia também sido reduzida de três para uma semana.

Foodwatch entrou com uma queixa contra a Nestlé na França em nome das vítimas de alimentos e de suas famílias. Além da ação legal, Sarmadi recomenda a introdução de uma política de “nomear e envergonhar” as empresas responsáveis, a fim de evitar que pratiquem redução de custos quando o assunto é a segurança alimentar.

“O melhor incentivo para fazer com que as empresas respeitem regularmente a legislação que regulamenta alimentos seria deixar claro a elas que as infrações vão ser divulgadas publicamente. A experiência de países como Dinamarca, Noruega e País de Gales mostra que, desde que todos os resultados das inspeções foram publicados, o número de empresas de alimentos infratoras diminuiu significativamente”, conclui Sarmadi. 

Adaptação: Soraia Vilela

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