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Surfando na tendência de sustentabilidade da cadeia de suprimentos

Michela Puddu
Michela Puddu é diretora-executiva e fundadora da Haelixa, uma empresa focada em tornar as cadeias de suprimentos éticas mais transparentes. Courtesy of Haelixa

A Haelixa está para as cadeias de suprimentos como os especialistas em DNA forense estão para as cenas dos crimes.

A spin-off da Escola Politécnica Federal de Zurique (ETH) criou uma solução patenteada, que deve se tornar o padrão ouro da rastreabilidade física. Ela baseia-se em um marcador de DNA, que pode ser colocado em matérias-primas, tais como metais preciosos ou têxteis, sem deixar rastros visíveis.

“A produção globalizada e a falta de visibilidade da cadeia de suprimentos são as causas de muitos dos problemas ambientais, econômicos e sociais que enfrentamos coletivamente”, diz Michela Puddu, a estilosa diretora-executiva da Haelixa. Natural de Roma, ela mudou-se para a Suíça para estudar Engenharia Química e acabou fixando residência no país.

O amor de Puddu pela moda abriu caminho para que ela começasse a pensar sobre as implicações ambientais das roupas: a indústria da moda é responsável por 10% das emissões de carbono do mundoLink externo e a maioria das peças de vestuário acaba incinerada ou em aterros sanitários. Essa mesma linha de questionamento levou Puddu a se voltar também para as cadeias de suprimento de ouro e pedras preciosas.

Enquanto fazia seu doutorado no ETH, Puddu desenvolveu, junto com o cofundador da Haelixa, Gediminas Mikutis, marcadores de DNA para a rastreabilidade de produtos. Esses marcadores, invisíveis a olho nu, são aplicados no início da cadeia de suprimentos. Um teste forense baseado em PCR – a mesma técnica biomolecular de laboratório usada para testar a Covid-19 – é usado para verificar a identidade do produto em qualquer etapa da cadeia de suprimentos. A identidade do produto pode se referir à origem do mesmo ou à condição de ser um produto reciclado ou orgânico, por exemplo.

“A beleza de usar o DNA é que você pode ter um identificador único para cada cliente, para cada produto”, conta Puddu, antes de dar uma volta pelos laboratórios bem iluminados da empresa. “Podemos produzir um número infinito de DNAs distintos para distinguir o que você quiser: cada mina, cada fornecedor, cada produto ou coleção individualmente”.

Se a ideia for dispor de rastreabilidade para uma mina no Chile, por exemplo, a Haelixa atribui a ela um DNA exclusivo, que só será associado àquela mina especificamente. Se aquele DNA sintético for encontrado novamente, por meio de testes forenses, em uma refinaria na Suíça, isso significa que o ouro veio daquela mina e não de outra. O mesmo princípio se aplica ao rastreamento da complexa cadeia produtiva do algodão.

“Na cena de um crime, você faz testes de DNA; em diagnósticos, você faz testes de DNA; portanto, é um teste extremamente confiável”, acentua Puddu. “E, obviamente, quando se trata de garantir as declarações sobre um produto, para atender às solicitações de autoridades ou alfândega, isso é extremamente importante, já que você tem um teste realmente sólido e também seguro: você só precisa saber a sequência de DNA atribuída a um produto para estar em condições de rastreá-lo”.

A Suíça abriga diversas empresas voltadas para soluções de rastreabilidade digital (QR/blockchain) e física de produtos pertinentes a diferentes setores. Até agora, a Haelixa concentrou sua solução em três frentes: metais preciosos, moda e alimentos. A empresa não divulga dados de seu faturamento.

O escritório central da Haelixa fica em um edifício de formato cúbico, cor de carvalho, situado em frente à estação ferroviária de Kemptthal – um bairro localizado entre Zurique e Winterthur. A estrutura que abrigava uma fábrica antiga da Maggi, marca mundialmente famosa de sopas e molhos pré-cozidos, foi absorvida pela multinacional suíça Nestlé, que ostenta uma loja mais abaixo na mesma rua da Haelixa. A área foi apelidada de “The Valley” em função da alta concentração de empresas inovadoras. No ambiente interno da Haelixa, as salas têm nomes de commodities importantes, como algodão e café.

“Cada setor tem suas questões específicas”, explica Puddu. “No que diz respeito ao ouro, o desafio está relacionado sobretudo à procedência. No caso da moda, tem a ver com a origem, mas também com a identidade, a qualidade e o desempenho da fibra. Além disso, pode haver uma mistura de material em qualquer ponto, o que acrescenta uma camada de complexidade”.

A man processes cotton in Egypt for shipping.
Um trabalhador processa algodão para envio no Egito. Keystone / Khaled Elfiqi

A Haelixa pertence ao pequeno e crescente grupo de empresas inovadoras voltadas para a rastreabilidade da cadeia de suprimentos – um segmento considerado essencial para atingir as metas globais de sustentabilidade do setor como um todo e de cada empresa individualmente.  As tecnologias de rastreabilidade física de produtos desenvolveram-se com rapidez no decorrer da última década.

O boom dessas empresas foi impulsionado por exigências regulatórias para produtos farmacêuticos (Estados Unidos, 2013), derivados do tabaco (União Europeia, 2014) e dispositivos médicos (União Europeia, 2017). O Green New Deal (Novo Pacto Ecológico) da UE exige passaportes digitais de produtos para uma ampla gama de setores e produtos. O impulso mais recente foi dado em março último com a Diretiva de Reivindicações Verdes da UE, que vai exigir das marcas a comprovação da sustentabilidade e penalizar a lavagem verde (greenwashing).

“As marcas que querem dar continuidade à narrativa sustentável precisarão ser mais transparentes com relação à sua cadeia de suprimentos. Para isso, terão que ser capazes de rastrear seus produtos (desde o fornecimento da matéria-prima até o fim de sua vida útil), se quiserem evitar multas pesadas”, pontua James Crowley, analista de inovação da Fashion for Good, uma ONG sediada em Amsterdã. 

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Paixão pela moda

A moda abriu à Haelixa as portas de entrada para o setor da rastreabilidade, representando hoje a maior parte de suas receitas.

“A cadeia de suprimentos do setor de vestuário é evidentemente fragmentada e complexa, tornando o rastreamento das roupas até suas origens uma tarefa difícil e trabalhosa”, observa Crowley, um dos autores do relatório Tracer Textile Assessment (Avaliação do Rastreamento de Têxteis), que analisa as tecnologias de rastreamento usadas por agricultores, fabricantes e marcas na cadeia de suprimentos da indústria têxtil. A Haelixa é uma das 17 empresas identificadas no relatório como atuantes nesta área. 

Fundada em 2016, a Haelixa declara participar do rastreamento de 20 milhões de peças de roupa por ano. As tecnologias de rastreamento, que fornecem evidências físicas da origem geográfica e da cadeia de suprimentos, são vistas como fundamentais para os esforços mais abrangentes do setor, a fim de atender aos padrões de sustentabilidade e dar credibilidade a produtos apontados como “orgânicos” ou “reciclados”, por exemplo.

Como explica Puddu, a maioria dos padrões relacionados a tecidos baseia-se no balanço de massa, com medições feitas no início e no final da cadeia de suprimentos. Manter o equilíbrio do volume em toda a cadeia de suprimentos ajuda a evitar, por exemplo, que se venda maior quantidade de algodão orgânico do que aquilo que é produzido. No entanto, esse modelo de cadeia de custódia não é infalível, visto que outros materiais podem ser misturados no decorrer do ciclo. “Mesmo que o volume no início e no final da cadeia de suprimentos seja o mesmo, isso não prova que o material continua sendo o mesmo”, completa Puddu.

A Haelixa atribui um DNA exclusivo a cada cliente, a cada produto e a cada local. O marcador de DNA sobrevive a todo o ciclo da cadeia de suprimentos – da fibra ao jeans ou às camisetas – e permanece detectável na peça final. Uma seringa libera uma fórmula especial através da roupa e o líquido coletado do outro lado é submetido ao teste PCR.

“Você pode pensar nisso como um teste de Covid para roupas”, diz Puddu. “Se o DNA que é único não estiver presente, então ele simplesmente não está ali”, conclui. 

Puddu argumenta que sua tecnologia é melhor que as etiquetas visíveis de identificação de produtos, visto que estas são finitas e podem ser falsificadas. Crowley diz que o ponto forte dos rastreadores com aditivos físicos – a categoria de inovação na qual a Haelixa se enquadra – é que eles facilitam o processo de “acompanhar e rastrear” diretamente e podem ser confeccionados sob medida para o usuário. No entanto, pontua Crowley, há uma carga operacional maior na cadeia de suprimentos, em comparação com algumas outras opções da próxima geração.

Mas os consumidores estão mesmo dispostos a pagar mais pela transparência? “O fardo dos custos é repassado aos fornecedores e às marcas”, observa Crowley. “Alguns custos podem ser repassados aos consumidores, mas isso fica oculto em uma pequena porcentagem da margem de preço do produto final”, completa.

Puddu refere-se a uma pesquisaLink externo da empresa de consultoria KPMG, segundo a qual, em todo o mundo, 64% dos consumidores apoiam a moda sustentável e 13% estão dispostos a pagar um acréscimo de 25% no preço por produtos sustentáveis. Além disso, 80% das marcas e dos varejistas – e um percentual semelhante de fornecedores – planejam investimentos de pelo menos 100 mil dólares nos próximos três anos, a fim de aumentar a transparência da cadeia de suprimentos.

Pesquisadores da empresa de consultoria global Bain&CompanyLink externo constataram que aproximadamente 15% dos consumidores de moda em todo o mundo “tomam decisões de compra de maneira consciente”, tendo em vista uma redução de seu impacto ambiental. Eles também concluíram que ainda mais gente agiria da mesma forma se as empresas do setor de vestuário disponibilizassem informações mais claras sobre a durabilidade do produto e seu impacto ambiental.

Oportunidade de ouro

A refinaria de ouro Argor-Heraeus usa a tecnologia oferecida pela Haelixa para rastrear a cadeia produtiva das barras de ouro doré desde as minas na América do Sul (e além) até a Suíça. Considerando que as barras recebem um marcador exclusivo de DNA, específico do local da mina, um teste forense pode confirmar a procedência quando as barras chegam à refinaria no cantão de Ticino. As barras verificadas são então refinadas em uma linha de produção que alimenta os cofres do Zürcher Kantonalbank, um banco local.

A Suíça é responsável por aproximadamente 75% da produção global de barras de ouro. O setor não prima pela transparência, embora isso esteja mudando lentamente. Investidores e consumidores estão pressionando para que as cadeias de suprimento do ouro estejam em conformidade com padrões éticos e diretrizes ambientais, principalmente com aquelas detalhadas pela Associação do Mercado de Bullion de Londres (LBMA, na sigla em inglês) e pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

“A rastreabilidade e a transparência em toda a cadeia de suprimento do ouro e de outros metais preciosos estão ganhando importância”, diz Drazen Repak, diretor do departamento de notas e metais preciosos do Zürcher Kantonalbank, que conectou a Haelixa à Argor-Heraeus. A instituição financeira é um dos principais investidores da Haelixa, ao lado da Verve Ventures, sediada na Suíça, e da Clariant AG, empresa suíça de capital de risco e multinacional da indústria química especializada. 

A Haelixa relata o rastreamento de mais de 10 toneladas de ouro por ano – um início sólido, considerando que a Suíça importou uma média de 8,6 toneladas do metal por mês em 2021 e 9,3 toneladas em 2022.

“A tecnologia aplicada ainda é relativamente nova no mercado”, explica Repak por e-mail. “Sendo assim, o volume de ouro rastreável hoje é ainda comparativamente baixo. No entanto, constatamos um aumento evidente na demanda por ouro rastreável nos últimos meses. Como indicação aproximada, o custo da aplicação e do teste de DNA representa menos de 0,1% do valor do produto refinado”.

A Haelixa não é a única solução em jogo no setor. A Metalor, uma das maiores refinarias de ouro do mundo, por exemplo, optou pelo que se chama de passaporte geoforense (ou “selo verde”), desenvolvido pela Universidade de Lausanne para validar a origem do doré que chega a suas instalações. A Haelixa planeja expandir seus negócios também para outros metais e, para isso, selou uma parceria com a Gubelin, sediada em Lucerna, em uma iniciativa de comprovação de procedência de diamantes e esmeraldas.

Regulações próximas

A regulação, que está prestes a ser implementada na Europa no que se refere à due diligence (diligência prévia) corporativa e ao setor têxtil especificamente, é um bom prenúncio para empresas como a Haelixa. A União Europeia desenvolveu uma estratégia para tornar os materiais têxteis mais sustentáveis (incluindo a durabilidade como parte dos requisitos de design) e circulares (significando que as roupas devem ser recicladas ou reutilizadas em vez de jogadas no lixo). A UE prevê a emissão de Passaportes Digitais de Produtos para roupas até 2025.

A França estabeleceu, a partir de janeiro de 2023, a obrigatoriedade da rotulagem ecológica para grandes empresas com faturamento superior a 50 milhões de euros. Isso significa que os consumidores devem receber informações sobre a possibilidade de conserto, reciclagem, conteúdo de material reciclado, uso de recursos renováveis, rastreabilidade e presença de microfibras plásticas do produto. Isso pode ser feito através de um código QR, de uma etiqueta na camiseta ou por meio de sites dedicados ao produto em questão.

A moda é uma indústria que movimenta três trilhões de dólares. Aos poucos, o chamado mercado de moda ética está ganhando terreno, tendo atingido um valor de quase 7.548 milhões de dólares em 2022, o que significa uma taxa de crescimento anual composta (CAGR, na sigla em inglês) de 6,5% desde 2017. Há expectativas de crescimento do mercado até 11.122,2 milhões de dólares em 2027, de acordo com a Business Research CompanyLink externo, empresa especializada em consultoria de pesquisa de mercado.

“Há muitas mudanças em curso na indústria têxtil, uma indústria que está fazendo a transição de um setor bem desregulamentado para um setor bastante regulamentado”, diz Puddu. “Qualquer alegação de que algo é verde precisa ser confirmada”. 

Embora a Iniciativa pela Responsabilidade Empresarial tenha sido rejeitada nas urnas em 2020, Puddu vê um apoio reforçado à causa e uma maior relevância do assunto na Suíça. A Haelixa já trabalha e mantém parcerias com várias empresas suíças, incluindo a Spoerry, fabricante de fios e misturas de algodão de luxo sediada em Flums. Além disso, há também cooperações com a Rheinhart, a marca de caxemira FTC, a Nikin e com o fabricante de luxo WEBA, que abastece várias marcas, incluindo a Hugo Boss.

A Haelixa também firmou uma parceria com a Rieter, uma fornecedora de maquinário para fiação de algodão sediada na vizinha Winterthur. A parceria está voltada para a criação de um complemento para o maquinário de fiação fabricado pela Rieter, que pulverizaria a formulação patenteada da Haelixa. A meta é automatizar o processo, o que facilitaria a escalabilidade.

O próximo desafio de Puddu são as cadeias de suprimento de alimentos. De acordo com uma pesquisa de mercadoLink externo realizada pela empresa Polaris, o mercado de rastreabilidade de alimentos estava avaliado em 18,15 bilhões de dólares em 2021, com projeção de crescimento até 35,48 bilhões de dólares até 2029. Segundo Puddu, o feedback inicial das autoridades regulatórias na Suíça e nos EUA sobre o produto da Haelixa é positivo. O que ainda falta é uma liberação regulatória na Europa para que a empresa possa atuar comercialmente. 

“Queremos que essa tecnologia inspire o mundo a fazer escolhas mais responsáveis”, conclui Puddu.

Edição: Virginie Mangin

Adaptação: Soraia Vilela

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