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Uma voz suíça grita o desespero da esquerda israelense em Berlim

Enlouquecendo: em "Shikun", Irène Jacob interpreta uma mulher levada à ruína física e mental enquanto testemunha o seu mundo ao redor descambando para o fascismo.
Enlouquecendo: em "Shikun", Irène Jacob interpreta uma mulher levada à ruína física e mental enquanto testemunha o seu mundo ao redor descambando para o fascismo. Agav Films

A atriz suíço-francesa Irène Jacob é a estrela de Shikun, uma adaptação livre da peça O Rinoceronte (1959), de Eugène Ionescu, dirigida pelo mestre israelense Amos Gitai. Uma fábula que retrata a ascensão do fascismo, o filme estreou na semana passada no Festival de Cinema de Berlim.

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A Berlinale deste ano, agora em sua 74ª edição, foi encerrada no último 25 de fevereiro em meio a protestos e acaloradas controvérsias políticasLink externo.

Enquanto a coprodução palestino-norueguesa No Other Land (Nenhuma outra terra), feita por um coletivo de jornalistas israelenses judeus e palestinos, levou o prêmio de melhor documentário – e o discurso de agradecimento dos cineastas logo provocou uma reação feroz dos políticos alemães -, uma resposta um tanto discreta foi dada a Shikun (“habitação social” em hebraico), o único filme israelense no programa principal.

Essa coprodução da Suíça, França, Reino Unido e Brasil, é assinada pelo principal cineasta do país, Amos Gitai, cujos arquivos estão depositados na Cinemateca Suíça. Shikun é sua primeira coprodução suíça.

Risco de extinção política

Ao contrário do que aconteceu no Mercado Europeu de Cinema na noite anterior – quando manifestantes pró-palestinos tomaram conta do salão principal e pediram o fim da guerra e da Ocupação israelense – a estreia de Shikun não foi recebida com muitos protestos.

De acordo com o jornal israelense Jerusalem PostLink externo, a sessão de perguntas no cinema principal do festival contou com um pedido de cessar-fogo e uma pergunta, dirigida à ministra alemã da Cultura, Claudia Roth, e ao próprio Gitai, se a Alemanha deveria romper os laços diplomáticos com Israel por causa de “seu genocídio em curso”.

Talvez, em parte, isso se deva ao fato de o filme por si só ser um grito desesperado de protesto de um autor que, durante sua extensa carreira, foi identificado como um dos representantes mais expressivos do chamado “campo da paz” israelense, outro tipo de espécie em extinção.

Essa força política em declínio, associada principalmente à esquerda israelense, mas não exclusiva dela, tem visto, como o próprio Gitai, seus esforços para defender os direitos palestinos e protestar contra a ocupação israelense dos territórios palestinos perderem ressonância no país.

Assista aqui a uma entrevista recente de Amos Gitai para o canal de notícias France 24, logo após o ataque do Hamas em 7 de outubro (em inglês):

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Rinocerontes entre nós

Esse último trabalho é uma adaptação livre da peça O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, de 1959, na qual a população de uma cidade francesa na década de 1940 se volta para o fascismo e o niilismo político.

No início de 2023, Gitai filmou essa encenação atualizada em Tel Aviv e Be’er Sheva, uma grande cidade israelense ao sul da Cisjordânia e a 40 km de Gaza, em resposta à enorme onda de protestos que paralisou Israel após a tentativa do governo Netanyahu de restringir o poder do judiciário e da Suprema Corte.

Notavelmente, a estrela do filme não é israelense, mas suíça: Irène Jacob. Ela interpreta uma mulher – como que um coro de tragédia grega – levada à ruína física e mental enquanto testemunha a virada para o fascismo ao seu redor.

Gitai, por meio de Jacob, descarta qualquer sutileza para retratar o desespero da esquerda israelense enquanto assiste, impotente, à ascensão de um regime nacionalista, supremacista, etnocêntrico, teocrático e iliberal, colocando em risco a vida de judeus e muçulmanos em todo o mundo.

“Como a luta contra o terrorismo se transformou em destruição de canos de água?”, pergunta um homem. “Precisamos deixar algum rastro”, diz outra pessoa.

Cenário simbólico

Quando a encontro em seu hotel em Berlim, Irène Jacob está sentada do outro lado de uma sala de jantar alugada para a ocasião, sozinha em uma grande mesa circular destinada a jantares de recepção e cerimônias.

Perto da porta, Amos Gitai está recostado em uma poltrona, digitando no celular. Atrás de Jacob, a fileira de janelas amplas que iluminam a sala dá para uma vista um tanto surreal do Memorial aos Judeus Assassinados da Europa, ao lado do Portão de Brandemburgo e da rua Hannah Arendt.

À mesa, com meu gravador entre nós, hesito inicialmente em caracterizá-la como suíça, tentando encontrar as palavras certas, já que ela nasceu em Paris e só depois se mudou para Genebra para estudar. “Sim, sou suíça”, ela afirma, sorrindo. “É isso que eu sou.”

Há outros jornalistas na sala. “Qual é a sua opinião sobre a guerra em Gaza? Ou sobre a Ucrânia?”, diz um deles.

Ela interrompe, educadamente, sentindo que a pergunta precisa de uma resposta incisiva: “A guerra é simplesmente horrível. Escuridão, morte, destruição. Acho que não podemos dizer outra coisa. Nesse filme, só poderíamos criar um espaço social, artisticamente, onde você vê essas pessoas juntas, carregando essas histórias [de guerra] com elas.”

Amos Gitai (centro) no set de filmagem de "Shikun"
Amos Gitai (centro) no set de filmagem de “Shikun” Agav Films

O corredor inspirador

Desdobrando-se em longas tomadas teatrais, Shikun se passa em uma série de locais semidesertos em Israel: um estacionamento, um conjunto habitacional no estilo brutalista, a estação de ônibus de Tel Aviv (deserta à noite). A primeira cena se passa em um corredor do conjunto habitacional e, assim como a maior parte do filme, é capturada em um dos vários planos-sequência, em que a câmera segue a cena por um longo período sem cortes.

“Ele foi muito inspirado por esse corredor”, diz Jacob sobre Gitai. “Eu estava em Paris e enviava a [Gitai] vídeos, monólogos. Estávamos trabalhando juntos em uma peça. Então ele sugeriu que eu desse uma olhada em Ionesco. Quando chegamos àquele corredor, já tínhamos tudo isso em mente.”

“Todos nós tínhamos histórias diferentes para contar. Chegamos com esses textos preparados – em hebraico, francês, ucraniano – e começamos a trabalhar a partir deles. Mas quando a reeleição [do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu] aconteceu, houve ainda mais urgência para que todos nós agíssemos rapidamente.”

‘Rinocerontes’ em hebraico: seguir o gado

Gitai, do outro lado da sala, me chama para conversar com ele também. Jacob vem, senta-se na cadeira em frente e fica observando calmamente enquanto ele fala.

“Durante o movimento de protesto, a imprensa israelense – a imprensa liberal – começou a usar esse termo, ‘rinoceronte’, inspirado em Ionesco”, diz ele. “Conheci a filha [do dramaturgo] em Paris e ela me disse que o hebraico é a única língua em que rinoceronte é tanto um substantivo quanto um verbo, hitkarnefut. Significa você se tornar um rinoceronte e seguir a manada. A partir disso, fui direto à fonte”.

“[Irène Jacob] é inteligente, sensível, não é mundana”, acrescenta ele, gesticulando para ela enquanto a observa. “Ela gosta do trabalho, do desafio intelectual, da reflexão. Ela veio a Israel com a missão de trabalhar em minha própria peça, House, que em breve será apresentada em Londres, Berlim e Roma. Como ela estava lá, eu a levei para conhecer o país. Com pessoas inteligentes, você tem que estimulá-las com novos conhecimentos, para que elas possam lhe dar algo mais preciso de volta.”

Jacob me diz: “Depois dos ensaios, quando estávamos nas locações, organizamos as filmagens de forma colaborativa; foi certamente uma experiência única, construir o filme à medida que avançávamos. Isso foi inspirador. Tentar encontrar coisas no local e fazer com que elas acontecessem. Tentar isso, tentar aquilo. Com Amos, o tempo passa de uma maneira diferente. São momentos longos em que tudo pode acontecer – e acontece. Isso é muito bom para o intérprete trabalhar.”

Hana Laszlo, que ganhou o prêmio de Melhor Atriz em Cannes por "Free Zone" (2005), de Gitai, lê um livro sobre o Holocausto e o campo de concentração de Terezin.
Hana Laszlo, que ganhou o prêmio de Melhor Atriz em Cannes por “Free Zone” (2005), de Gitai, lê um livro sobre o Holocausto e o campo de concentração de Terezin. Agav Films

Ilusão multicultural

Jacob menciona que trabalhou com uma amiga coreógrafa para coordenar seus movimentos físicos perturbadores em Shikun, que parecem explodir dela à medida que o filme avança, deixando-nos atordoados com sua natureza aparentemente involuntária. Eu disse a ela que é difícil, assistindo ao filme em Berlim nessa época de carnificina civil, não ver isso como um sintoma da morte e da destruição que enchem nossas telas desde o início da guerra.

“Toda a violência já existia antes. Estava presente todos os dias. Talvez não fosse óbvio. Se eu vi isso? Não, eu não vi. Não era algo avassalador, certo? Não parecia perigoso. A gente estava só prestes a ver algo se aproximando, algo que não é normal. Por exemplo: todo mundo deve ter sua opinião, certo? E se você não puder mais ter a sua, está tudo bem? Toda essa violência tem estado presente lá há algum tempo.”

“Será que estou falando francês?” pergunta a personagem de Jacob em Shikun, como se fosse para si mesma. “Ninguém sabe se estou falando francês, então quem se importa se eu falar.” Ao seu redor, ruídos em ucraniano, hebraico, iídiche e árabe. Uma Israel multicultural que parece, neste lapso de tempo, que poderia ter sido apenas uma ilusão, uma esperança efêmera.

Editado por Mark Livingston e Eduardo Simantob

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