Morre ‘Pepe’ Mujica, o ex-guerrilheiro e presidente do Uruguai que assombrou o mundo

José “Pepe” Mujica, o ex-guerrilheiro que chegou à Presidência do Uruguai com um discurso anticonsumista que o transformou em uma referência da esquerda latino-americana, morreu nesta terça-feira (13) aos 89 anos, informou o atual presidente Yamandú Orsi.
Conhecido como o “presidente mais pobre do mundo”, apelido que ganhou por seu estilo de vida austero, Mujica revelou, no começo deste ano, que o câncer de esôfago diagnosticado em maio de 2024 havia se espalhado e seu corpo não aguentava mais os tratamentos.
“Com profunda dor comunicamos que faleceu nosso companheiro Pepe Mujica. Presidente, militante, referência e líder. Vamos sentir muito a sua falta, Velho querido”, escreveu Orsi em sua conta no X.
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, visivelmente emocionado, anunciou em Pequim, onde realiza uma visita de Estado, que viajará ao Uruguai para se despedir de seu amigo.
“Conheço muita gente, muitos presidentes, muitos políticos, mas nenhum deles se iguala à grandeza da alma de Pepe Mujica. Ele era uma figura excepcional”, afirmou Lula.
Apesar da saúde fragilizada, Mujica foi um pilar crucial para o retorno ao poder da esquerdista Frente Ampla nas eleições de novembro de 2024, nas quais apoiou ativamente o presidente Orsi.
“Têm um sabor agradável, é um pouco como um prêmio de despedida”, disse, em entrevista à AFP após a vitória de seu herdeiro político.
O corpo de Mujica será velado na quarta-feira no Palácio Legislativo. Nas ruas de Montevidéu, os uruguaios já começavam a guardar o luto.
“Eu o conheci, era gente boa, humilde e trabalhador, e se cometeu algum erro, bom, somos humanos, podemos errar”, disse à AFP Carlos Casal, um aposentado de 71 anos, sentado em um bar do centro da capital uruguaia.
“Que tristeza! Mas, ao mesmo tempo, ele foi tão grande que é uma perda mais física”, disse, com lágrimas nos olhos, Mary Orique, uma funcionária pública de 45 anos.
– Fora do protocolo –
Mujica conquistou uma popularidade inusitada para o presidente de um país de 3,4 milhões de habitantes, estável e encravado entre os gigantes Brasil e Argentina.
Seu nome deu a volta ao mundo em 2012, com um discurso aplaudido na cúpula Rio+20. Sem gravata, mas com um traje muito mais formal do que usava em sua Presidência — durante a qual participava de atos oficiais usando sandálias —, subiu ao púlpito da conferência e repreendeu o consumismo.
Um ano depois, foi ainda mais duro na Assembleia da ONU, na qual criticou que a humanidade tenha “sacrificado os velhos deuses imateriais” para ocupar “o templo com o deus mercado”.
Em sua chácara modesta na periferia de Montevidéu, que recusou a abandonar durante o seu mandato, Mujica recebeu personalidades, como o rei emérito da Espanha, Juan Carlos I.
O diretor de cinema sérvio Emir Kusturica, fascinado pela personalidade do “Pepe”, fez um documentário que estreou em 2018.
Tampouco faltaram polêmicas, com frases fora de tom, que viraram manchetes em todo o mundo.
Um insulto direto à Fifa em 2014 e a indelével frase “essa velha é pior que o vesgo”, dita sem que ele percebesse que um microfone estava ligado, em alusão à então presidente argentina Cristina Kirchner e seu falecido marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, são a ponta do iceberg de uma dialética que começou com “não seja bobo”, usado reiteradas vezes perante jornalistas.
– De guerrilheiro a estadista –
Em seu mandato, o ex-guerrilheiro se caracterizou por romper com as regras.
Ele impulsionou a legalização do mercado da cannabis com um inédito plano que pôs o Estado para gerenciar da produção à comercialização da erva, e recebeu presos de Guantánamo, em um acordo com o então presidente americano Barack Obama.
Essa rebeldia contra a ordem estabelecida, que o levou a ser, na juventude, um dos líderes da guerrilha urbana Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN), ativa no Uruguai da década de 1960 até 1972, também lhe permitiu suportar 13 anos de prisão em meio a torturas e condições desumanas.
Após sua libertação, em 1985, reintegrou-se na vida política e em 1989 fundou o Movimento de Participação Popular (MPP), que liderou até sua morte e transformou no setor mais votado de longe na Frente Ampla, o principal partido do país.
Foi deputado em 1995, senador em 2000 e ministro da Pecuária e Agricultura em 2005, em sua trajetória para a Presidência.
– ‘O maior acerto’ –
Em 2020, a pandemia o obrigou a renunciar a sua vaga no Senado, mas a militância e suas disputas dialéticas, tanto com adversários quanto com aliados políticos, permaneceram. Assim como o cultivo da terra, a paixão que viveu sobre seu trator em sua chácara até seu corpo dizer chega.
Sua esposa, Lucía Topolansky, ex-guerrilheira, ex-senadora e ex-vice-presidente (2017-2020) e sua companheira há mais de cinco décadas, foi outra constante em sua vida.
“Ter encontrado Lucía no fim das contas foi o maior acerto”, disse Mujica em uma longa entrevista concedida à AFP em sua casa, poucos meses antes de morrer, cercado por seus livros e suas lembranças. Sem ela, assegurou, teria sido “muito difícil” sobreviver.
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