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Fora da sombra de Godard: redescobrindo Anne-Marie Miéville

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Ela não precisa gritar para defender seu ponto de vista: Anne-Marie Miéville com Jean-Luc Godard em uma cena de seu filme “Nous sommes tous encore ici” (Ainda estamos todos aqui), 1996. © Périphéria / Les Films du Losange / Véga films / Les Films Alain Sarde

A cineasta suíça Anne-Marie Miéville talvez seja mais conhecida como a parceira de Jean-Luc Godard na vida e na arte. Na época da morte de Godard, em 2022, Miéville, hoje com 79 anos, havia se afastado há muito tempo do cinema e sempre evitava os olhares do público. Mas, longe de desaparecer, seus filmes agora estão ganhando nova atenção em festivais.

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Desde a morte do grande cineasta franco-suíço, aos 92 anos, em 2022, o mundo do cinema e da arte tem vivido um “momento Godard”, para usar o título de um recente programa do Musée de l’OrangerieLink externo, em Paris.

Um fluxo constante de livros, artigos, conferências, exibições e exposições sobre o cineasta tem tomado as cidades de Nyon, Paris, Berlim, Porto e, mais recentemente, Londres. Com a criação da Fundação Jean-Luc Godard, um projeto de longo prazo de documentação, arquivamento e restauração também está no horizonte.

A fundação já foi creditada como curadora na exposição na Fundação Serralves, no Porto, como Collectif Ô Contraire, um coletivo composto por colaboradores de Godard ao longo de duas décadas: Fabrice Aragno, Nicole Brenez, Jean-Paul Battaggia e Paul Grivas.

Mas um nome ausente nessas iniciativas é o de Anne-Marie Miéville, parceira de Godard na vida e, muitas vezes, na arte. Dada a natureza entrelaçada de suas vidas profissionais e pessoais, parece estranho que ela não tenha sido citada entre os colaboradores desse momento Godard. Miéville foi a terceira e última esposa do cineasta.

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Miéville em uma cena de “After the Reconciliation”, com Godard na sombra. Collection Cinémathèque suisse. Tous droits réservés

Longe dos holofotes

Os esforços da SWI swissinfo.ch para entrar em contato com Miéville por meio de seus conhecidos e contatos em festivais não foram frutificaram. A última entrevista publicada que ela concedeu data de 2000, após o lançamento de seu quarto e último longa-metragem, Après la réconciliation.

O casal vivia de forma tranquila e discreta no pequeno município suíço de Rolle, próximo ao lago que banha Genebra, onde moravam desde 1978. Mas Godard nunca ficou completamente longe dos olhos do público e até cultivou uma presença on-line em seus últimos anos, ocasionalmente agraciando os fãs com lives no Instagram ou autorretratos enigmáticos.

Ao contrário, Miéville se dizia cautelosa com aqueles que estavam mais interessados nela como pessoa do que como cineasta. Sua cautela era frequentemente mencionada em tom de brincadeira pelos interlocutores nas poucas entrevistas de rádio e TV que concedeu. Ela respondia com escárnio e frustração.

“Nunca tive problemas quando se tratava de obter reconhecimento, nunca sofri por estar na sombra”, disse Miéville certa vez em uma entrevista ao Le Monde. Agora parece que ela escolheu permanecer longe das luzes.

>> A colaboração entre Miéville e Godard também inclui esse anúncio irônico da marca de cigarros suíça Parisiennes (1992):

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Além do cinema

Na festa de abertura da exposição de Godard no Musée de l’Orangerie, que contou com a presença de figuras renomadas como Dominique Païni, curador, programador e ex-diretor da Cinemateca Francesa, e Alain Bergala, crítico de cinema e ex-editor-chefe da Cahiers du Cinéma, minhas perguntas jornalísticas sobre a viúva do cineasta receberam respostas desanimadoras.

Percebi um desconforto compartilhado sobre falar em nome de alguém que havia escolhido não falar publicamente, ouvi comentários vagos sobre luto e perda, e uma declaração definitiva de Jean-Paul Battaggia: “Anne-Marie Miéville deixou o mundo do cinema; tudo isso não lhe interessa mais.”

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Na filmagem de “Sauve qui peut (la vie)”, também conhecido como “Cada um por si”, 1980. Alain Bergala/DR

Fabrice Aragno, que recentemente conversou com a swissinfo.ch sobre Jean-Luc Godard, parecia compartilhar esse senso de finalidade em relação ao trabalho de Miéville. Em uma breve ligação telefônica, Aragno disse: “Jean-Luc costumava dizer que ela era muito mais rápida do que ele”, porque em apenas 10 filmes “ela conseguiu percorrer toda a gama do cinema. Ele levou muito mais tempo. Ele ainda não tinha terminado”.

Jean-Michel Frodon, ex-editor-chefe da Cahiers du Cinéma, entrevistou Miéville quando trabalhava no Le Monde. Grande admirador de seus filmes, Frodon explicou que havia perdido contato com ela há muito tempo. Tendo apenas informações de segunda mão sobre a evolução de seu relacionamento com Godard, bem como sobre os desafios de saúde e outras dificuldades que ela enfrentou nos últimos 15 anos, ele disse que não poderia dar uma atualização confiável.

“As formas idólatras de adoração em torno de Godard — execráveis durante sua vida, mas, infelizmente para ele e para nós, parcialmente indispensáveis para a continuação de seu trabalho — só pioram após sua morte”, disse Frodon.

“E pioram a forma como ela (apesar dos esforços de Godard) se tornou invisível como co-autora de muitas de suas obras. Seus quatro longas-metragens continuam sendo muito queridos para mim, e só posso me alegrar com qualquer gesto que ajude a preservar ou restaurar parte da atenção que eles merecem.”

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Cena de um passado mais público: Anne-Marie Miéville (à esquerda) com o cineasta suíço Richard Dindo e a produtora Ruth Waldburger, durante o Festival de Cinema de Locarno de 1994. Keystone

Honras à revelia

Recentemente, vários gestos em lembrança ao trabalho da cineasta apareceram. O trabalho de Miéville foi homenageado em dois festivais de cinema neste outono — no final de outubro, no Festival Internacional de Documentários de Ji.hlava, na República Tcheca, e em Madri, em novembro, no Festival Márgenes e na Filmoteca Español de Madrid. Antes, seus filmes raramente haviam sido exibidos internacionalmente e menos ainda na Suíça, seu país natal, onde até agora nenhum festival ou instituição de arte exibiu um programa abrangente dedicado ao seu trabalho.

A gerente de programação do Festival de Cinema de Ji.hlava, Adriana Belešová, disse que a retrospectiva dedicada ao trabalho de Miéville deve repercutir mais entre cinéfilos, especialistas em estudos cinematográficos e cineastas do que entre o público tcheco em geral. Belešová disse que, embora a colaboração entre Godard e Miéville estivesse longe da dinâmica convencional de uma artista mulher ofuscada por seu colega homem, os críticos e jornalistas frequentemente a descreviam dessa forma.

“Queríamos destacar o quanto Miéville era multicriativa”, disse Belešová. “É por isso que selecionamos filmes que ilustram as várias funções que ela desempenhava — fazer o som, a edição e escrever as narrações.”

>> Para a Swiss Expo 02, Miéville e Godard fizeram esse curta-metragem, “Liberté et Patrie” (Liberdade e Pátria), sobre Aimé Pache, um pintor pouco conhecido mesmo em seu cantão (estado) suíço, Vaud. Disponível com legendas em inglês:

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Seguindo os programas organizados em Ji.hlava e Márgenes, a associação sem fins lucrativos Filmkollektiv Frankfurt também está organizando uma retrospectiva com foco no trabalho solo de Miéville. Aragno disse à swissinfo.ch que estão atualmente buscando financiamento para digitalizar os negativos e cópias, muitos dos quais só estão disponíveis em formatos de vídeo a partir da década de 1990: “As impressões de 35 mm são difíceis de exibir”, disse ele. “Estamos tentando garantir que os filmes possam ser vistos adequadamente nos cinemas, com versões legendadas disponíveis em todo o mundo.”

Aragno disse que está contente com a nova onda de interesse no trabalho de Miéville. “Até Jean-Luc ficava muito irritado quando as pessoas às vezes só se interessavam por ela por causa dele. É importante que o cinema dela exista por si só.”

Nascida em Lausanne em 1945, Miéville seguiu brevemente a carreira de cantora, trabalhou em uma livraria palestina em Paris e morou com o fotógrafo e cineasta suíço Francis Reusser por algum tempo.

O encontro de Miéville com Jean-Luc Godard, em 1971, marcou o início de uma rica parceria criativa, geralmente chamada de período “Sonimage”, o nome da produtora que eles fundaram em Grenoble. A Sonimage funcionava como um laboratório criativo muito à frente de seu tempo, fazendo experimentos com temas como família, comunicação, representação e trabalho.

Em 1977, Miéville fez seu primeiro filme solo, Papa comme maman, para a Swiss Radio Television (RTS). Ao longo da década de 1980, continuou a trabalhar com Godard como editora, roteirista e co-diretora de dois filmes, além de fazer seu primeiro longa-metragem, Mon cher sujet, em 1988. Seis anos após seu primeiro filme, que explorou aspectos da feminilidade entre gerações, Miéville dirigiu seu segundo filme, Lou n’a pas dit non (1994). Com sua sensibilidade única, Lou n’a pas dit non incorporou formas de arte como poesia, performance e escultura.

Seu foco se voltou para a filosofia com Nous sommes tous encore ici (1997), um filme em três partes com trechos de Górgias, de Platão, e The origins of totalitarianism, de Hannah Arendt, no qual Aurore Clément e Godard interpretam um casal. Après la réconciliation (2000), seu último longa-metragem até o momento, mostra Miéville e Godard como um casal que se encontra e conversa com um casal mais jovem sobre amor, desejo e medo.

Edição: Catherine Hickley e Eduardo Simantob/fh
(Adaptação: Clarissa Levy)

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