Fotógrafo americano acha na Suíça o contrário da saudade
"O país é são, limpo, caro de chorar e saturado de uma inesgotável beleza direta e nada irônica. Alguns meses adentro da residência artística, eu estava em um estado encantado". (*)
Teju Cole
O fotógrafo, escritor e crítico americano Teju Cole passou seus verões entre 2014 e 2019 na Suíça, explorando o visual e os sinais dos espaços vazios rodeados de montanhas. O resultado é o livro "Fernweh", o anseio de distância em alemão - uma obra que ressoa ainda mais alto em uma época de isolamento massivo.
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Trabalho como editor na redação em português e sou responsável pela cobertura de cultura da SWI swissinfo.ch. Trabalho como repórter, editor, crítico de arte e cinema, além de coordenar nossos colaboradores.
Nasci em São Paulo (Brasil), onde estudei cinema e economia. No jornalismo trabalhei em várias funções (repórter, editor, correspondente internacional) antes de me voltar para a produção de documentários e artes visuais (autor e curador). Entrei para a SWI swissinfo.ch em 2017, onde pude trazer toda essa ampla experiência para a editoria de cultura.
O timing não poderia ser mais (in)auspicioso. Enquanto “FernwehLink externo” estava sendo lançado, em fevereiro, amplas medidas de isolamento foram rapidamente implementadas em quase todos os países europeus, incluindo a Suíça, para retardar a propagação do coronavírus. De repente, o que deveria ser uma exploração visual e atemporal dos espaços da Suíça em toda sua glória silenciosa e vazia, tornou-se uma espécie de espelho obscuro da realidade mais imediata.
“Fiquei menos interessado em povoar de gente minhas imagens e mais interessado em traços do humano sem a presença humana. Usei as sombras profundas com menos freqüência do que no passado. Eu praticamente deixei de fotografar à noite. Quando a seqüência começou a tomar forma, tive uma noção melhor do que pertencia e do que não pertencia.
Eu estudava fotografias constantemente, mas também me imergia nos ritmos de certos pintores e colagistas: Chardin, Matisse, Rauschenberg, Mehretu, Mutu. Eu me despojei de algumas fotos ʻboasʻ como se cortasse frases bonitas de um rascunho, e aprendi como uma série de fotos bem argumentadas devem ser seguidas por uma ou duas que sejam mais simples e ventiladas.
Afinal, a autoria não está apenas no que é criado, mas também no que é selecionado”.
Teju Cole
A convite da LiteraturhausLink externo de Zurique para uma residência artística, Teju Cole passou metade de 2014 viajando e tirando fotos pelo país, enquanto escrevia um projeto relacionado a Lagos, Nigéria, cidade onde passou sua infância.
Não poderia haver nada mais antipodal para Cole: “Cresci sem montanhas, perto da lagoa e do mar, em uma cidade onde as únicas alturas eram as dos arranha-céus. Eu conhecia os extremos da vida da cidade: a multidão, o trânsito, a energia, o crime. Mas os extremos da natureza, do clima violento ou terreno vertiginoso, eram desconhecidos para mim”.
Durante sua estada na Suíça, Cole diz que nunca se sentiu entediado. Como um completo estranho em trânsito, ele se diverte com a sensação de estar suspenso no tempo, navegando solidão em uma espécie de não-lugar. A palavra ‘Fernweh’ é o seu próprio conceito, o oposto do habitual ‘Heimweh’ (“saudade de casa”) – é o desejo de estar longe.
A palavra em alemão para saudades de casa é Heimweh. Diz a lenda que os mercenários suíços a partir do século XV, dispersos por toda a Europa combatendo em guerras estrangeiras, eram soldados robustos e suscetíveis a poucas fraquezas. Mas eles sentiam saudades de casa com uma intensidade perturbadora, ansiando pelas alturas de seus cantões, seus lagos claros, seus picos protetores. Este sentimento eles chamavam de Heimweh.
Essa intensa desordem psicossomática foi tratada pela primeira vez em 1688 pelo médico suíço Johannes Hofer [Nota do editor: Hofer era um estudante de medicina francês estudando em Basileia], que também lhe deu o nome grego ʻʻnostalgia’ [Nota do editor: Hofer juntou duas palavras gregas, Nostos e Algos, para fazer a nova palavra]. O termo entrou na língua inglesa no final do século XVIII como ʻʻhomesickness”.
Heimweh, tendo sido absorvido pelo alemão padrão, adquiriu um antônimo, Fernweh. Fernweh é um anseio de estar longe de casa, um desejo de estar em lugares distantes. Fernweh é semelhante ao desejo de andar por aí, mas, como Heimweh, tem uma tonalidade doentia e melancólica.
A luxúria vagabunda tem suas raízes na tradição romântica alemã e está fortemente ligada à caminhada pela natureza. Pense nas pinturas de Caspar David Friedrich de um caminhante solitário em paisagens espetaculares, comungando com a grandeza avassaladora e a complexidade da natureza.
Fernweh é um pouco mais impreciso. Simplesmente se deseja estar distante. Fernweh: as sílabas suspiram.
Após sua primeira estadia, ele passou os próximos cinco verões de volta a este exótico país alpino, convencido de que para entender a Suíça é preciso entender suas montanhas. E havia farto material mais antigo para estudar.
“A Suíça está no meio, mas não na média; ela é uma periferia num local central; ela está neste mundo, mas não pertence a ele”.
Teju Cole
A travessia dos Alpes, antes e depois do túnel do Gotardo, era uma aventura que inspirava e desafiava algumas das melhores mentes, artistas e escritores europeus. Ideias da Suíça estão presentes em toda a arte e literatura europeia, espalhando-se para o mundo inteiro. A Suíça tem sido há décadas, por exemplo, o cenário principal de cenas musicais românticas em filmes de Bollywood da Índia.
“O Lago de Zurique, maior do que o esperado e tão limpo e gracioso quanto a cidade cujo nome ele compartilha, é descrito por Baedeker da seguinte forma:
ʻʻSua paisagem, embora com ligeiras pretensões de grandeza, dificilmente é igualado em beleza por qualquer outro lago”.
Mas achei o Lago de Zurique igual ao Lago Brienz, que no verão tem uma cor turquesa de claridade hipnótica, e é circundado por íngremes penhascos verdes que, no inverno, ameaçam com avalanches as pequenas vilas ao longo da margem. Na verdade, o problema que encontrei foi que cada lago na Suíça era o mais bonito de todos, se por acaso fosse aquele em que você se encontrava”.
Teju Cole
Por todo seu orgulho em uma longa história nacional ‘moderna’ que se estende por mais de 700 anos, a Suíça não pode deixar de ser envolvida pela ideia que outros fizeram dela. Pode-se argumentar que a Suíça foi inventada pela indústria do turismo britânico no século 19 como um destino exótico e barato (!) para uma crescente classe média burguesa. Antes disso, ao longo do século XVII até o XIX, a Suíça se destacou no imaginário aristocrático britânico como parte do Grand Tour, uma viagem pela Europa continental que jovens nobres (e também mulheres, sob a guarda de uma acompanhante) realizavam como um rito de passagem para se tornar damas e cavalheiros “do mundo”.
“À medida que fotografava cada vez mais, vi que era atraído por sinais, por espelhos nas paisagens (na Suíça, há espelhos retangulares em muitos cruzamentos de rua, que emolduram a paisagem atrás de você por cima da que você está de frente), por mapas e globos, por montanhas, bem como por fotos das montanhas em outdoors e pôsteres.
Notei (…) que algumas das minhas fotografias de montanhas pareciam fotografias de fotografias de montanhas. Fui atraído por esta divisória cintilante entre as coisas e as imagens das coisas”.
Teju Cole
O país correspondeu às expectativas projetadas – mas definitivamente não ficou mais barato.
Teju Cole, por sua vez, conhece muito bem a Suíça imaginada, sua história e sua geografia. Ele também é muito franco sobre suas dúvidas e não tem tanta certeza se o que está tentando fazer algum dia vai valer a pena, intelectual e criativamente.
“Eu nunca me senti suíço. Nunca tive vontade de me mudar para a Suíça. A atração estava no afastamento, no estranhamento com jamais falhava. (…) Eu estava mais em casa na Suíça precisamente porque não estava. O país me me fazia feliz justamente porque não era capaz de me alegrar”.
Teju Cole
Cole usa imagens e textos para expandir as noções de longa data sobre a Suíça. Seus pensamentos e reflexões se aproximam de uma galeria de imagens aparentemente enfadonhas, trazendo-as à vida. Qualquer que seja a impressão que ele consiga projetar, uma coisa é certa: Teju Cole juntou-se definitivamente ao clube de artistas e pensadores do mundo que moldam os cartões-postais mentais suíços no nosso inconsciente coletivo.
Julho de 2015. Final da tarde. Um quarto de hotel em Zurique. Estive todo o dia fotografando e não fiz boas fotos. Tiro a tampa da minha lente. Estou fotografando com um Canon Elan 7 agora, um adorável filme leve S.L.R. de cerca do ano 2000. Eu giro a câmera em seu tripé. Cobrindo a frente do guarda-roupa na sala há uma foto de um navio em um lago, ao fundo montanhas. Você poderia acordar de repente à noite neste quarto e, vendo aquele lago mal iluminado pela luz da rua, imaginar-se a flutuar: a emoção levemente vertiginosa de não ser ninguém, em perfeito equilíbrio com a satisfação de ter, por aquele momento, um quarto só seu.
Eu encaro o guarda-roupa. Abro as janelas atrás de mim e aumento ligeiramente a exposição da câmera. Uma luminária preta, papel de parede listrado cinza, o guarda-roupa, um bagageiro dobrável, interruptores de luz pretos, uma maçaneta dourada em uma porta preta. Nessa ordem, eles parecem uma ilustração na enciclopédia de uma criança. Esta é uma porta. Isto é um navio. Isto é um lago. Isto é uma montanha. Este é um quarto que você anseia por estar longe, um quarto repleto de Fernweh. Este é um homem num quarto, agachado atrás da câmera, preparando sua foto, longe de casa, não completamente feliz, mas talvez mais feliz do que estaria em outro lugar.
Teju Cole
(*): Todas as legendas das fotos são trechos do ensaio de Teju Cole Far Away from HereLink externo (“Longe daqui”), New York Times Magazine, 27.09.2015.
swissinfo.ch/ets
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