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Suíça e Kosovo: uma ligação transcultural em transformação

Hashim Thaci, herói popular sob suspeita

Hashim Thaci, im Hintergrund das Schweizer Sturmgewehr 57
Hashim Thaci em trajes civis nos primeiros anos da UCK. O guarda-costas à direita carrega um fuzil de assalto suíço. SRF, Rundschau

Hashim Thaci orquestrou, a partir da Suíça, a luta pela liberdade do Kosovo. A seu redor, aconteceram na época crimes atrozes. Qual a parcela de responsabilidade que recai sobre ele?

Quando Hashim Thaci fundou, há 30 anos, um Exército, ele criou dois nomes que ficariam gravados: seu próprio codinome, “Gjarpri”, que significa cobra. E o UÇK, como foi nomeado o Exército de Libertação do Kosovo.

Hashim Thaci, hoje com 55 anos, nasceu em uma família de agricultores. Eram oito filhos vivendo em uma moradia de um cômodo só, com banheiro no pátio externo. A seguir, cresceu em Burja, um povoado de 300 habitantes, localizado nas montanhas de Drenica, ponto de rebeldes.

Guerrilheiro, político, presidente

No Kosovo, Thaci é hoje a figura icônica da luta pela liberdade contra a Sérvia. Há 30 anos, o montanhoso país balcânico libertava-se da potência da qual era apenas uma província.

Thaci orquestrou essa luta e foi uma figura determinante para o Kosovo durante décadas: a partir de 1995, como líder guerrilheiro; depois de 2000, como político; de 2016 em diante, como presidente.

Hashim Thaci em julho de 2020 cercado por ex-combatentes da UCK. Eles o celebram após seu retorno de uma audiência em Haia. Copyright 2020 The Associated Press. All Rights Reserved.

Agora ele está sendo julgado ao lado de três outros réus em Haia. As acusações são de mais de 200 assassinatos, mais de 400 casos de tortura e sequestro, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A acusação no Tribunal Especial para o Kosovo concentra-se no período da guerra entre 1998 e 1999.

Em Den Haag, novembro de 2020. Keystone / Jerry Lampen

Agora ele está sendo julgado ao lado de três outros réus em Haia. As acusações são de mais de 200 assassinatos, mais de 400 casos de tortura e sequestro, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A acusação no Tribunal Especial para o Kosovo concentra-se no período da guerra entre 1998 e 1999.

As investigações do caso duraram décadas e foram iniciadas em 1999 pela suíça Carla del Ponte, então procuradora-geral do Tribunal Penal Internacional (TPI) para a Antiga Iugoslávia. No entanto, ela não levou suas constatações sobre os crimes cometidos pelo lado kosovar a tribunal. Em 2008, ela as registrou em seu livro de memórias, publicado naquele ano.

Comércio de armas, crimes de guerra

Em 2010, o suíço Dick Marty, investigador especial do TPI, retomou o assunto, incumbido pelo Conselho da Europa. Ele também apontou sérios crimes de guerra, além de tráfico de armas, drogas e órgãos. No centro do crime organizado, segundo Marty, um nome recorrente: Hashim Thaci.

E quanto a provas? Marty não conseguiu reuni-las devido à intimidação das testemunhas e ao sigilo dos clãs kosovares, como afirmou na época.

Thaci, por sua vez, revidou todas as acusações. Depois que nada pôde ser provado contra ele, a União Europeia passou a não poupar esforços: 312 pessoas estão na lista de testemunhas.

De armas em punho

A história do jovem Estado do Kosovo é estreitamente ligada à Thaci – e à Suíça, onde ele agiu durante anos decisivos.

Em 1989, a Sérvia, sob o comando de Slobodan Milošević, suprimiu o status de autonomia do Kosovo. Os albaneses kosovares foram forçados a abandonar empregos e escolas. De início, eles formaram barricadas sem fazer uso da violência. Hashim Thaci tinha 21 anos e era estudante em Pristina. Inicialmente, um ativista da causa kosovar-albanesa, ele logo procuraria a resistência armada.

A partir de 1993, grupos de guerrilheiros passaram a atacar postos policiais sérvios – as primeiras agressões. A reação da Sérvia viria logo a seguir. Em função de um ataque à polícia, Thaci foi acusado, em 1993, de porte de armas e atos terroristas. Em 1994, ele fugiu para a Suíça antes de seu julgamento. Esse também foi o ano de fundação do UÇK.

Armas para o UÇK

O governo suíço reconheceu o franco-atirador como refugiado político. Ele pôde permanecer no país e recebeu uma bolsa de estudos. Em 1996, Thaci se matriculou na Universidade de Zurique e começou a estudar História do Leste Europeu. Ele ganhava seu sustento como manobrista de trens e em breve já falava fluentemente o alemão e o suíço-alemão.

Ao mesmo tempo, Thaci começou a atrair atenção para o UÇK entre os imigrantes kosovares. Seus compatriotas na Suíça eram extremamente nacionalistas e Belgrado assediava os albaneses kosovares com cada vez mais brutalidade. O que era possível fazer?

Thaci enxergou uma oportunidade e se apegou a ela. Visto que o UÇK precisava de armas, dinheiro e combatentes, ele começou a organizar tudo a partir da Suíça. Na mídia do país, as acusações de tráfico de armas foram repetidas à exaustão, mas nunca com provas concretas. Thaci jamais desmentiu as acusações.

30 mil homens armados

Dentro do UÇK, Thaci foi também responsável pelo recrutamento e pela formação de pessoal – os imigrantes kosovares na Suíça naquele momento formavam um grupo de 130 mil pessoas, entre as quais crescia o desejo de lutar pela liberdade. A partir de 1995, aumentou o número de homens jovens de origem kosovar que partiam rumo a seu país de origem. Incontáveis ônibus os levavam da Suíça a Pristina; por vezes eram centenas de voluntários se apresentando a cada dia para o serviço. Em poucos anos, o UÇK já tinha recrutado 30 mil homens armados.

No Kosovo, o UÇK profissionalizou sua guerrilha contra a Sérvia. Em breve já se falava em “zonas libertas”.

Em 1998, contudo, a Sérvia contra-atacou: 400 localidades albanesas foram incendiadas, 300 mil kosovares expulsos por meio de assassinatos e saques – uma limpeza étnica estava em curso. Naquele momento, o conflito começou a alarmar a comunidade internacional.

Em fevereiro de 1999, os EUA convocaram uma conferência sobre o Kosovo em Rambouillet, nos arredores de Paris. A Sérvia e os kosovares deveriam resolver o conflito à mesa de negociações.

O “líder invisível”

Essa era a hora de Hashim Thaci. Os EUA o haviam identificado como homem forte do Kosovo. Bob Dole, que encabeçava as mediações, o chamou de “líder invisível”. O ex-agricultor de Burja adentrava então, com determinação, o palco da comunidade internacional, se autointitulando “diretor político do UÇK”.

Thaci, com apenas 29 anos de idade, liderou a delegação kosovar nas negociações de paz. Os comandantes da OTAN e a Secretária de Estado dos EUA se aproximaram dele, mas Thaci enfrentou ambos. Ele se recusou a persuadir o UÇK a entregar suas armas. A seu favor pesou o fato de que o lado sérvio fez ainda menos concessões.

A reputação da Sérvia já estava em baixa. Os crimes de guerra dos sérvios estavam sendo cometidos diante dos olhos do mundo: assassinatos, estupros, tortura, deslocamento forçado, valas comuns. A Sérvia era o algoz, o Kosovo, a vítima.

Hashim Thaci em 1999 com a Secretária de Estado dos EUA Madeleine Albright, à direita o líder albanês Ibrahim Rugova. Keystone / Thomas Koehler

As negociações de paz fracassaram em março de 1999 e a OTAN iniciou de imediato ataques aéreos contra a Sérvia – sem mandato da ONU. Três meses mais tarde, a Sérvia retiraria suas tropas do Kosovo.

A linha dura de Thaci em Paris rendeu a ele o cargo de primeiro-ministro da jovem república.

Ainda durante a Guerra do Kosovo, em maio de 1999, Lumnije, a mulher de Thaçi, dava à luz em Zurique. Nascia Endrit, filho do casal. O pai comemorou em um quartel do UÇK no Kosovo.

Ainda completamente armado

Em junho de 1999, começava uma fase decisiva. Após os ataques aéreos movidos pela OTAN, os sérvios se retiraram do país e surgiu um vácuo de poder no Kosovo. Ainda totalmente armado, o UÇK assumiu a segurança interna.

Unidades do UÇK ocuparam, naqueles meses, as administrações municipais e os postos de gasolina, bem como os centros de poder no país dominado por zonas rurais. E deram início aos “biznis” – a duvidosa economia paralela dos clãs.

Acima de tudo, porém, o UÇK estava agora enfurecido contra os “colaboradores”, contra os sinti, rom e a minoria sérvia. Opositores políticos foram sequestrados em massa, martirizados em câmaras de tortura e empurrados para estábulos como animais. O UÇK cometia os crimes que estão hoje sendo julgados em Haia.

Mas Thaci cometeu, ele próprio, algum assassinato? Ou esteve ciente de homicídios e perseguição e não os impediu?

Execuções em círculo próximo

Em junho de 1999, o “New York Times” publicou uma reportagem sobre o que acontecia no Kosovo. Na época, o jornal escreveu que Thaci havia ordenado a execução de seis líderes concorrentes do UÇK. O relatório foi posteriormente incluído nos arquivos do Tribunal Penal de Haia.

Em julho de 1999, foram encontrados os cadáveres de 14 agricultores sérvios, executados em um campo aberto durante a colheita. Vingança do UÇK? O massacre de Gracko é outro caso julgado em Haia.

Três dias após o massacre de Gracko, o ministro suíço das Relações Exteriores, Joseph Deiss, visita Hashim Thaci em Pristina, em julho de 1999. A Suíça abriu posteriormente uma embaixada no país. Keystone / Ruben Sprich

Pela primeira vez, Thaci foi obrigado a sair em defesa de sua reputação e daquela de suas tropas. 

A serpente trocou então de pele. Thaci tornou-se político, com seus ternos perfeitos, sublinhando sua aparência atraente. Conforme prometido em Paris, o UÇK se dissolveu em dezembro de 1999. A liderança fundou um partido político, Thaci assumiu a presidência.

Nos anos seguintes, investigadores na Itália, Alemanha e Suíça rastrearam os “biznis” dos antigos chefões do UÇK. Transações mafiosas vieram à tona: drogas, armas, prostituição. Thaci controlava “uma rede criminosa”, analisou o serviço de inteligência alemão em 2005. O líder kosovar, contudo, não foi a julgamento.

“Não tenho culpa”

Em 2008, Thaci anunciou, como presidente do país, a independência do Kosovo. Quando percebeu, em novembro de 2020, que o julgamento contra ele seria inevitável, afirmou: “Não permitirei que o presidente da república vá a julgamento”. No mesmo dia, Thaci renunciou e viajou até Haia para se submeter à prisão preventiva. “Não sou culpado”, afirmou na abertura do processo, em abril de 2023.

A defesa argumenta que o UÇK nunca foi um exército regular, com uma cadeia de comando, mas sim uma associação livre de paramilitares. Se restarem dúvidas, Hashim Thaci, a cobra, vai por fim deixar para trás todas as acusações que pesam contra ele.

Editor: David Eugster

Adaptação: Soraia Vilela

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