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Menino de rua, mas só por um dia

Deborah (dir.) mostra à Fabienne (esq.) como se lustra sapatos. swissinfo.ch

No Dia Internacional do Direito da Criança, comemorado pela ONU, seis mil meninos e meninas suíças abandonaram as salas de aula para viver um dia como meninos de rua. O evento foi organizado pela ONG Terre des Hommes.

swissinfo acompanhou três meninas no seu dia de engraxate. Elas gostaram do teste, apesar do frio, mas sabem que sua vida está distante das misérias do mundo.

Deborah, Fabienne e Sarah estão decepcionadas. Elas procuram clientes por todos os lados, até mesmo na estação de trem de Aefligen. Porém o vilarejo parece estar completamente desabitado. No início da tarde, a maioria dos habitantes ainda está no trabalho. Os poucos rostos encontrados nas ruas são dos operários que estão reparando as linhas de trem, porém eles não têm tempo para conversa. Assim a professora sugere às crianças de bater de porta em porta nas casas, à procura de sapatos para lustrar. Elas respiram um pouco de ar para tomar coragem, pegam suas caixinhas e começam a caminhar.

As três meninas suíças, com idades entre 13 e 14 anos, freqüentam a escola de Aefligen, pequeno vilarejo de pouco mais de mil habitantes no Emmental, uma região de fazendas e pequenas indústrias localizada a meia-hora de carro de Berna. Hoje, excepcionalmente, elas não têm aula. Acompanhadas por mais 15 crianças e duas professoras, Deborah, Fabienne e Sarah estão nas ruas para viver um dia como menino de rua. As três se transformaram em “engraxates”, enquanto outros colegas vendem castanhas e bolos caseiros. Para combater o frio do inverno, o grupo trouxe até chá em garrafas térmicas.

Os vendedores-mirins estão participando de uma ação organizada pela Terres de Hommes para comemorar o Dia Internacional do Direito da Criança em 20 de novembro, data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1954. Pela décima vez consecutiva, essa conhecida ONG suíça coloca crianças nas ruas para chamar atenção a um problema social comum em muitos países do mundo e isso não apenas no chamado Terceiro Mundo.

“Eu já vi programas de televisão que mostravam como vivem algumas crianças no Brasil ou na África. É terrível essa situação. Mas a única vez que vi de verdade um menino de rua foi quando eu e meus pais estávamos passando férias na Grécia. Ele se aproximou da gente, com as roupas sujas e pediu um pouco de dinheiro”, conta Deborah.

Seis mil crianças

Como nos outros anos, Terre des Hommes convidou todas as escolas suíças a participar da ação. Cada uma delas recebe algumas caixas com os produtos necessários para um dia de trabalho nas ruas, incluindo também gorros laranjas, adesivos e distintivos o logotipo da campanha. Em cada escola, os professores explicam aos alunos o objetivo da ação. A participação deles é voluntária.

“Como professora de geografia, eu peço regularmente que os alunos façam trabalhos sobres diferentes países. Muitas vezes discutimos também a questão da pobreza e diferenças sociais em outros países. No caso da ação da Terres de Hommes, eles ficaram com bastante vontade de participar. Além de sentir um pouco na pele a questão do problema, para elas essa é uma oportunidade divertida de escapar da sala de aula”, explica a professora Anette Frischknecht.

O interesse é grande. Pouco antes do dia marcado, a ONG anunciava à imprensa que seis mil crianças, ou 220 classes escolares, estariam nas ruas para vender algo, anunciar jornais ou limpar sapatos.

Deborah, Fabienne e Sarah já tocaram a campainha de diversas casas e ninguém abriu as portas. Na rua eles encontram uma senhora idosa, que varre a calçada acompanhada pelo cão. “A senhora têm alguns sapatos que precisam de uma graxa? O dinheiro vai para crianças pobres. A senhora paga quando quiser”, pergunta meio sem graça Sarah. A idosa abre um sorriso e responde, com uma certa ternura, que todos os sapatos da casa estão limpos. Ela mesma se ocupa disso. De qualquer maneira, ela tira 20 francos da carteira e dá às crianças.

Questionadas se poderiam imaginar abandonar a escola para ganhar a vida como engraxates, as meninas arregalam os olhos quase incrédulas. “Acho que minha família nunca me colocaria na rua para trabalhar. Felizmente a gente não está passando necessidade”, rebate Deborah.

Porém a falta de experiência, não significa que ela e suas amigas nunca trabalharam na vida. “Há pouco tempo cada uma de nós fez um estágio de uma semana na empresa onde gostaríamos de fazer a nossa formação profissional, para ver como é. Eu fiquei numa loja de animais”, conta a vivaz menina. “Meu sonho agora é ser vendedora especializada. Eu sou apaixonada por bichos”.

Outra realidade

A professora nega com a cabeça quando o repórter lhe pergunta se as crianças de Aefligen já teriam tido um contato com a pobreza. “Temos algumas famílias ricas e outras menos, mas basicamente, todas elas vivem em famílias estruturadas, com boas casas, vão à escola, fazem férias e tem computador em casa”, diz Anette Frischknecht. Na Suíça o ensino é gratuito, assim como os livros escolares. Mesmo na hora do lazer, o governo tenta diminuir as diferenças. “Quando temos uma semana de esqui, a comuna ajuda financeiramente aquelas famílias com muitas crianças e que tem menos dinheiro. Assim, todos podem participar”.

Para Fabienne, a mais velha das três meninas com seus quatorze anos, a maior preocupação é com o seu futuro profissional. Ela passou sua semana de estágio num florista e descobriu a profissão dos sonhos. Porém ela sabe que precisa de bons resultados quando encerrar a escola básica, quando terá aproximadamente dezessete anos. São poucas as vagas nas lojas onde ela pode fazer sua formação. “Eu conheço uma menina que já enviou 70 currículos e nada”, conta.

Como ela e suas amigas não encontraram clientes nem batendo nas portas, decidem levar o repórter à escola. Lá elas querem apresentar dois colegas brasileiros. “Eles eram de uma família muito pobre e foram abandonados pelos pais. Uma família na Suíça os adotou e agora eles estudam com a gente”, explica Deborah tentando encontrar os dois na multidão de crianças que brincam no pátio da escola. “Acho que eles também estão na rua”, se desculpa a menina.

Para não dizer que ficaram só passeando, Deborah, Fabienne e Sarah decidem ir à casa de uma delas e pedir para a mãe alguns pares de sapato. Esta encontra alguns e promete dar uma boa contribuição se o trabalho for bem feito. As três abrem suas caixinhas de engraxate e começam a lustrar os calçados. Feliz, a mãe arrisca até um pensamento. “É como se elas estivessem brincando. Se soubessem que essa é, muitas vezes, a única fonte de renda para famílias nos países pobres…”.

swissinfo, Alexander Thoele

Terre des Hommes Suíça é uma associação sem fins lucrativos, sem filiação política nem religiosa, e que orienta suas ações sob dois objetivos principais:

– A melhoria de condições de vida das populações desfavorecidas nos países do Sul, particularmente as crianças e as mulheres, através de diversos programas de desenvolvimento ou humanitários, realizados por parceiros locais.
– A informação sobre as disparidades entre o Norte e o Sul, principalmente junto aos jovens na Suíça.

Terre des Hommes Suíça possui duas seções, uma em Genebra e outra na Basiléia. A seção franco-suíça trabalha com voluntários e assalariados, sendo que a atividade voluntária ocupa maior espaço em sua organização.

A organização Terre des Hommes foi fundada em 1960, por Edmond Kaiser, em Lausanne. Seu objetivo, inicialmente, era o de acolher na Suíça crianças que não podiam receber assistência médica em seus países natais como Argélia, Tunísia, Vietnã. Em 1966, um grupo organiza-se em Genebra e, logo após, novos grupos surgem em outros cantões da Suíça. Assim nasce a Terre des Hommes na Suíça. Rapidamente o movimento estende-se a outros países constituindo a Federação Internacional Terre des Hommes.

Em 1972, no cantão de Lausanne, a associação transforma-se em Fundação Terre des Hommes enquanto que em Genebra e Basiléia organizam-se nas duas seções de Terre des Hommes Suíça. As duas associações agem de maneira complementar sem que nenhuma renuncie à suas proprias convicções. Cooperações pontuais reforçam a sensibilização da opinião pública suíça face às violações dos direitos das crianças. (Texto do site em português da ONG).

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