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O que é preciso para ser um negociador da paz

Nelson Mandela at Burundi peace talks
Nelson Mandela em uma foto de 26 de fevereiro de 2001. Keystone / Jean-marc Bouju
Série Promoção da paz, Episódio 6:

O trabalho de mediar a paz é uma tarefa compulsoriamente discreta. Mediadores, especialmente as ONGs, não falam muito a respeito daquilo que acontece nos bastidores ou acerca dos dilemas morais que precisam enfrentar. Eles são uma peça importante da diplomacia suíça e acabarão por desempenhar um papel no processo de paz na Ucrânia.

“Quando você tem um conflito, há imediatamente a tendência de desumanizar o outro lado”, diz à swissinfo.ch Pierre Hazan, consultor sênior do Centro de Diálogo Humanitário (HD Centre), sediado em Genebra, quando questionado sobre o título de seu livro publicado em setembro: “Negotiating with the devilLink externo” (Negociando com o diabo). Segundo Hazan, “muito frequentemente estamos falando de pessoas que cometeram crimes de guerra. E a pergunta é: você quer limitar essencialmente a escala da insegurança regional e internacional? Você quer estabilizar a situação? Quer ajudar a encontrar algum tipo de acordo? Você precisa negociar e você não vai fazer isso com bons rapazes”, completa.

Essas pessoas, acrescenta Hazan, têm seus próprios interesses e podem não estar falando sério quando falam de paz. “Eles podem estar querendo te manipular”, aponta o consultor.

Dilemas éticos

Na experiência de Hazan, há ainda outros dilemas morais. Se você ajudar a intermediar uma evacuação segura de civis, para salvá-los de danos, como na Síria, por exemplo, isso pode estar contribuindo para os objetivos de limpeza étnica das partes em guerra. Se você for encarregado de selecionar um terço dos prisioneiros para libertação de um campo terrível, mantido pelas milícias croatas na Bósnia, como você faz essa escolha?

Hazan foi membro de uma equipe de ajuda humanitária e teve que fazer justamente isso nos arredores de Mostar, em 1993. Ele descreve as condições estarrecedoras, a perda de peso dos prisioneiros e a consciência de que aqueles que ficaram para trás poderiam morrer, bem como a abordagem cínica do oficial do campo que só queria libertar os “sem valor” (como por exemplo, o que não tinham parentes na Alemanha, Áustria ou Suíça, talvez dispostos a pagar um resgate). Não foi possível chegar a um acordo e o oficial acabou recusando de súbito todas as liberações. Os ônibus enviados para recolher os detentos libertados saíram vazios.

Hazan diz que aquele foi um ponto de virada moral para ele. “Durante aqueles poucos dias”, escreve, “compreendi como essa responsabilidade ética, que procura ajustar os meios aos fins, pode ser um fardo pesado, com todas as consequências potencialmente fatais que podem resultar daí”.

A definição de mediação de paz é vasta. “É basicamente quando uma terceira parte intervém, a fim de trazer algum tipo de resolução ao conflito ou para atenuar as consequências do conflito sobre a população”, afirma Hazan. Um exemplo: em 2016, a Noruega e Cuba ajudaram a intermediar um acordo de paz entre o governo e os rebeldes das FARC na Colômbia. Na República Central Africana, o HD Centre ajudou, durante a pandemia, a intermediar o acesso de civis a regiões mantidas por grupos armados, para que as pessoas pudessem ser vacinadas.

Especificamente suíço

Simon Mason, coordenador da equipe de apoio à mediação no Centro de Estudos de Segurança da Escola Politécnica Federal da SuíçaLink externo (ETH), afirma que mediar a paz é algo como uma especialidade suíça, embora outros países como a Noruega e a Finlândia também tenham a promoção da paz como parte integrante de suas respectivas políticas externas.

Mason destaca que a Constituição da Suíça inclui o objetivo de contribuirLink externo para “a coexistência pacífica dos povos, bem como para a conservação dos recursos naturais” (artigo 54). Há diferentes razões para isso, segundo o especialista, entre elas a tradição humanitária (ligada ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha). Além disso, “na divisão global de encargos, a Suíça é fraca na manutenção da paz do ponto de vista militar, atuando mais sob o aspecto civil”.

Entre as ONGs suíças que trabalham na mediação da paz estão o HD Centre e a Interpeace, ambas sediadas em Genebra, além do CICV, que também dialoga com todas as partes em zonas de conflito, negociando o acesso para aliviar o sofrimento dos civis. A Geneva Call, que trabalha com grupos armados para promover o respeito às normas e princípios humanitários, não é estritamente uma organização de mediação. Mas, segundo seu diretor Alain Délétroz, em uma entrevista de 2020 à SWI, os grupos armados podem, às vezes, acabar sendo preparados para se sentar à mesa de negociação. “Quando chegamos a esse estágio, a Geneva Call tem o dever de sair humildemente do caminho, colocando os grupos em contato com a diplomacia oficial ou com outros parceiros, como o Centro HD, por exemplo, que tem a capacidade e o profissionalismo de estabelecer um calendário de negociações políticas”.

“Para se ter uma visão geral sobre os mediadores suíços de conflitos, diz Mason, “é preciso optar primeiro por uma definição mais ampla ou mais restrita dessa atividade”.

Ao incluir o apoio à mediação e à promoção da paz nesse rol, há diversas organizações focadas em pesquisa, como o CSS e a SwisspeaceLink externo (o CSS também oferece treinamento para mediadores e a swisspeace apoio, por exemplo, a uma iniciativa de paz da sociedade civil síria em Genebra). Já o Centro de Genebra para Política de Segurança (GCSPLink externo) proporciona um espaço para o diálogo sobre questões de estabelecimento da paz, enquanto a Fundação Peacenexus e o Instituto da Paz de CórdobaLink externo oferecem apoio à consolidação da paz em várias regiões do mundo. A maioria dessas organizações fica em Genebra, mas o CSS está em Zurique e a swisspeace na Basileia.

Há diversas especializações e áreas de atuação. Govinda Clayton, pesquisador sênior especializado em processos de paz, que trabalha no CSS, chama isso de “ecossistema”.

Níveis de mediação

Há níveis distintos de mediação. Os processos “track one” abrangem as principais lideranças das partes em conflito e o envolvimento de uma com a outra. Isso normalmente inclui funcionários de governo e representantes de organizações intergovernamentais, como explica Clayton: “Um exemplo seria quando um funcionário dos Estados Unidos ou das Nações Unidas conduz um processo de paz envolvendo as lideranças das partes em conflito”. O embaixador estadunidense Richard Holbrooke, por exemplo, é tido como negociador responsável pelo Acordo de Dayton, que pôs fim à Guerra da Bósnia nos anos 1990. Jimmy Carter, por sua vez, negociou os Acordos de Camp David para o Oriente Médio em 1978, servindo de mediador entre os líderes do Egito e de Israel.

O que se chama de “track two” é, segundo Clayton, um processo menos formal, conduzido entre os membros de grupos em conflito, que pretendem auxiliar os líderes oficiais a resolver ou administrar os conflitos, sondando soluções possíveis em um cenário menos oficial ou público. “Quando não é oficial, muitas vezes não envolve as partes em conflito ou pelo menos não envolve seus líderes, mas abrange, por exemplo, nomes influentes do mundo empresarial, a sociedade civil, líderes religiosos e acadêmicos”.

O “track three“, por sua vez, remete a “processos de nível bem local”, muitas vezes conduzidos por ONGs de base, explica Clayton. A Interpeace é um bom exemplo de ONG suíça que trabalha principalmente neste nível de mediação. Egressa da ONU, ela se tornou uma organização independente há aproximadamente 20 anos e atua agora com ONGs locais principalmente na África e no Oriente Médio.

Os processos “track one” são importantes, mas eles são apenas uma parte do quadro, e muitos acordos de paz acabam fracassando, diz Renée Larivière, diretora sênior de programas da Interpeace. “Quando as pessoas estão em desacordo, brigando entre si há muitos anos, passando por violência e traumas, constatamos que assinar um acordo de paz, um pedaço de papel, não necessariamente traz a paz da noite para o dia”, observa Larivière.

A Interpeace, por exemplo, pretende se adaptar aos contextos locais e “investir em processos de acompanhamento e de longo prazo, tentando descobrir o que fazer para que sociedades ou indivíduos comecem a viver juntos novamente”, diz Larivière. Ela cita como exemplo o programa da Interpeace no Quênia, uma colaboração com a Comissão Nacional de Coesão e Integração, que monitora um acordo de cessar-fogo no Triângulo de Mandera, região fronteiriça entre o Quênia, a Etiópia e a Somália. Esta região tem uma longa história de conflitos violentos entre clãs e diversas comunidades. Através da organização de comitês locais de monitoramento do cessar-fogo e de mediadores locais, a paz continua sendo mantida e as relações entre os clãs melhoraram, completa Larivière.

As ONGs desempenham um papel importante, de uma forma ou de outra, em todas as etapas de um processo de paz. Um relatório de mapeamento de mediadores do CSSLink externo, redigido, entre outros, por Mason, no ano de 2011, aponta: “Elas são rápidas e flexíveis, mas, muitas vezes, falta a elas a influência ou a legitimidade democrática necessárias para esforços contínuos de mediação em conflitos políticos desafiadores”. De acordo com o relatório, “a principal vantagem das ONGs parece estar na fase de pré-negociação ou no apoio a negociações e à implementação”.

Mediando a paz na Ucrânia

No momento, o maior conflito que se tem em mente é a Ucrânia, e não há indícios, até agora, de que Moscou ou Kiev estejam dispostas a se sentar à mesa de negociação. Entretanto, os mediadores já vêm trabalhando nos bastidores, a fim de tentar amenizar as consequências humanitárias do conflito. A Turquia e a Arábia Saudita facilitaram uma troca de prisioneiros envolvendo cidadãos estrangeiros. Segundo relatos próprios, o HD Centre desempenhou um papel no Acordo de Grãos do Mar NegroLink externo, permitindo que as entregas de grãos ucranianos chegassem aos países que delas precisam, especialmente na África.

Clayton, do CSS, é um dos autores de um relatórioLink externo recente sobre as razões pelas quais as partes em conflito optam pelo cessar-fogo. O documento, baseado em uma análise de mais de dois mil casos de acordos de cessar-fogo no mundo entre 1989 e 2020, concentra-se em conflitos internos predominantes neste período, mas pode conter também algumas referências à guerra Ucrânia-Rússia.

Uma das principais conclusões desta pesquisa, argumenta Clayton, é a de que um cessar-fogo é um acordo inerentemente político – o que significa que os acordos para parar a violência dependem do progresso nas negociações das principais questões. Ele também constatou que, quando as partes não foram capazes de acordar um cessar-fogo nas fases iniciais de um conflito, em muitos casos, infelizmente, transcorreram anos até que se chegasse a um acordo.

Antes do início da guerra da Ucrânia, no dia 24 de fevereiro deste ano, havia no país uma rede de mediadores treinados in loco, diz Larivière da Interpeace. Segundo ela, eles atuaram especialmente para facilitar a integração dos deslocados internos nas comunidades, inclusive daqueles de língua russa.

“O trabalho local que eles estão fazendo é vital para garantir que haja uma estrutura social forte, uma coesão social e a resiliência das comunidades”, afirma Larivière, “porque o que temos visto com frequência é que, depois do fim da guerra, se o terreno não estiver preparado ou se não houver uma rede de pessoas que possam ajudar com a mediação, haverá explosões”.

Embora a paz na Ucrânia ainda pareça algo muito distante, parece que já existem alguns esforços nos bastidores para preparar o terreno caso isso aconteça.

Adaptação: Soraia Vilela

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Um homem falando

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“Estamos sempre cercados de pessoas e, ainda assim, estamos sempre sós”

Este conteúdo foi publicado em swissinfo.ch: A vida de um mediador é comparável à vida de um representante comercial, ou seja, sempre viajando de lugar em lugar comissionado por alguém e sem saber quando voltará para casa? Julian Hottinger: Durante minha formação como mediador éramos sempre comparados com os missionários que viajam distribuindo bíblias de vilarejo em vilarejo no sul…

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