Déficit de saneamento básico agrava pandemia no Brasil
Lavar as mãos com frequência é uma das principais recomendações para evitar a infecção pelo novo coronavírus. Mas no Brasil, onde 35 milhões de pessoas não têm acesso a água potável, esta medida não é tão simples de cumprir.
Sem contar que 100 milhões dos quase 212 milhões de brasileiros vivem sem sistema de esgoto sanitário e suas águas residuais são lançadas sem tratamento na rua ou em rios, lagos e no mar.
Um déficit histórico de saneamento básico, com graves consequências para a saúde e o meio ambiente, que a principal economia latino-americana pretende reparar até 2033 com uma lei controversa sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, que abre o caminho para a privatização das estatais de água e esgoto.
A 15 km do Palácio do Planalto, em Brasília, muitos dos cerca de 16.000 habitantes da comunidade Santa Luzia extraem clandestinamente água da rede pública.
“Agora é mais ainda, água ou vida”, explica à AFP a moradora Poliana Feitosa, 22 anos, enquanto mostra um tanque enterrado na entrada de sua casa neste assentamento irregular de casebres de tijolos, madeira e tetos de zinco.
A sensação de carência se aprofundou com a pandemia, que, no Brasil, já deixou quase 3 milhões de infectados e se aproxima das 100.000 mortes.
“O que eles querem que eu faça? Queremos viver com dignidade, ter serviços básicos e pagar por eles”, diz a mulher. Apesar de tudo, Poliana Feitosa está entre os afortunados, porque a água chega à sua casa com certa intensidade e frequência através de um cano ligado por seu marido à tubulação da rede de distribuição. Muitos outros usam água não tratada de poços artesianos, mananciais ou água da chuva, que acumulam em pequenos depósitos.
– Flagelo de pobres e ricos –
Também sem rede de esgoto, os vizinhos de Santa Luzia, nos arredores de um antigo lixão fechado há anos, acumulam as águas residuais em buracos fechados com cimento, que serão absorvidas pelo subsolo, ou se livram delas a céu aberto, sobretudo a água do chuveiro ou de lavar louça. Suas ruas de terra são rasgadas por pequenos veios de água turva, que, às vezes, produzem um cheiro forte.
Em comunidades sem estrutura de saneamento básico, há um risco maior de transmissão de doenças, explica à AFP José David Urbáez, infectologista do Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília. “Não ter esgoto para águas residuais, que, no fim, se misturam às fontes de água limpa, pode veicular partículas virais que permanecem na água”, acrescenta Urbáez, médico venezuelano radicado no Brasil há décadas.
O Instituto Trata Brasil, uma organização da sociedade civil que promove o avanço do saneamento básico, lembra que a falta de rede de esgoto também afeta bairros ricos, como o Morumbi, em São Paulo, e a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. “O único diferencial é que você, muitas vezes, não vê o esgoto no bairro rico, muitas vezes ele é afastado, colocam uma tubulação que conecta à sua casa e coleta num rio”, explica à AFP seu presidente, Edison Carlos.
“Muitas vezes, o próprio condomínio faz uma fossa e a liga com uma tubulação a um rio ou um lago. Para os moradores, parece que está tudo bem, mas para o meio ambiente, não. Há contaminação 24 horas por dia na natureza, porque o esgoto não para”, acrescenta.
– Público versus privado –
Edison Carlos explica que o déficit “histórico” de saneamento básico é consequência da falta de investimentos no planejamento urbano, da indiferença do governo da vez e da má gestão, da corrupção, do nepotismo e da situação financeira dramática das empresas públicas. “O Brasil perde 38% da água potável antes de a mesma chegar às casas, sobretudo por vazamentos (devido a tubulações velhas), roubos, medidores muito antigos”, lamenta.
O Novo Marco de Saneamento, sancionado em julho por Bolsonaro, prevê levar água potável a 99% dos brasileiros e rede de esgoto a 90%, para o que serão necessários 700 bilhões de reais. Um bolo gigantesco, que poderá ser repartido entre empresas privadas, o que gera resistência daqueles que veem na privatização potenciais prejuízos aos consumidores.
E que promete ser, especialmente nestes tempos de pandemia, um assunto-chave nas eleições municipais de novembro, vistas por muitos como um plebiscito de metade de mandato para Bolsonaro.